Escrevo este texto antes do 7 de setembro, culminância desta Semana da Pátria em que o aniversário de 200 anos da Independência foi marcado pela necrofilia soft de um governo que decidiu fazer de um coração numa jarra instrumento para propaganda. Não sei, portanto, se a intenção do nosso atual governante de transformar a data num comício particular e mostrar a força política que ainda tem junto a seus apoiadores “flopou” ou “bombou”, para usar as gírias de gente mais jovem do que eu.
De qualquer modo, resolvi ignorar a patuscada patrioteira e falar de algo que realmente tem a contribuir para o entendimento do país e de sua formação, e não apenas para a criação de um circo macabro. Vamos falar de dois dos grandes romances produzidos no Brasil, e que condensam em suas páginas uma visão alegórica da história do país muito profunda e necessária diante da disseminação de fazendas de cliques e de fábricas de fake news: Viva o Povo Brasileiro, o épico malemolente de João Ubaldo Ribeiro, e Incidente em Antares, a sátira em que Erico Verissimo desconstrói não apenas o Brasil, mas sua própria obra literária.
Ubaldo sem medo das alegorias
Viva o Povo Brasileiro é um romance monumental que se dedica a concentrar em símbolos a formação caótica do Brasil. O romance atravessa 330 anos de história e constitui um tipo de “romance total” já pouco praticado na época em que foi publicado (1984). Para começar, por sua extensão e pelo escopo que abarca. Até arriscar uma sinopse de seu vasto panorama temático terá o efeito de ignorar muito da sua riqueza, mas é possível dizer que o livro narra uma história que se descortina de 1647 a 1977, enfocando alternadamente uma gama numerosa de personagens que atravessam alguns momentos cruciais da história brasileira e servem como um contraponto constante entre a narrativa “oficial” heróica e mitologizante e a “realidade” sempre mais simples, bruta e permeada de uma violência insensata.
Essa dinâmica é algo que o livro estabelece desde seu início, no qual é descrito com uma linguagem de orgulho cívico irônico uma pintura retratando um alferes que discursa a favor da independência para um punhado de gaivotas antes de ser atingido pela artilharia portuguesa e legar à luta pela libertação do Brasil palavras imortais (que, a narrativa reforça, ninguém além das gaivotas ouviu de fato, escancarando o caráter mitificador do patriotismo brasileiro. A narrativa contrapõe a imagem heroica construída do Alferes Brandão com o seu passado real, um simples pescador chamado José Francisco, envolvido por forças que não compreende e que nunca obteve de fato a patente da qual os colegas jocosamente o apelidam (e que ele não entende muito bem qual seja, aliás).
Em oposição ao homem comum tornado herói nacional por sua morte, a narrativa logo apresenta a vil personalidade de Perilo Ambrósio Góes Farinha, filho de proprietários portugueses e futuro Barão de Pirapuama, que mata um escravizado para sujar-se com seu sangue e forjar a sua participação na luta de resistência contra os portugueses. Como ele viajava com dois negros, ele corta a língua do outro para impedir que o sobrevivente revele seu embuste. A perversa figura de Perilo, talvez um dos personagens mais odiosos da literatura brasileira, é uma alegoria bastante óbvia de uma elite herdeira do legado colonizador português que “compra” sua nacionalidade com o sangue e o silêncio imposto dos escravizados.
Duas linhagens
Dessa elite original retratada em Perilo emergem outras duas linhagens que correrão paralelo ao longo do romance. A primeira delas é representada na figura de Amleto, mestiço que faz da adulação, da esperteza e de uma loquacidade fácil seus instrumentos de sobrevivência, ascendendo da condição de bastardo a guarda-livros da propriedade de Perilo – e, mais tarde, após a morte deste, a proprietário dos bens e da fortuna do barão. Ao mesmo tempo em que ascende financeiramente, Amleto vai reforçando seu próprio “branqueamento”, evitando o sol para não escurecer a pele e repetindo a toda hora que pode a lorota de que é, na verdade, filho de um inglês. Uma versão que se impõe após Amleto finalmente dispor da fortuna do barão para sustentá-la por meio da falsificação sistemática de documentos, dando origem a uma linhagem burguesa inconsequente que, séculos mais tarde, vai enxergar em seus poucos retratos a figura de um branco de “pura estirpe” europeia. Uma imagem de uma burguesia brasileira que prefere até hoje ser europeia, esquecer a contribuição negra para a história nacional e negar de modo sistemático o racismo que está por toda parte.
A segunda linhagem importante a partir do terço inicial do romance é a do próprio “povo brasileiro”, tanto aquele da categoria sociológica quanto o movimento revolucionário subterrâneo iniciado pela altiva Maria da Fé, a Dafé, mestiça nascida de Vevé, mulher negra estuprada pelo barão e criada por Nego Leléu, um homem cuja esperteza garante não apenas sobrevivência, mas inusual riqueza – numa atualização do mito estereotipado bem brasileiro do “malandro”. Ao redor de Dafé e de seus sonhos de justiça e igualdade gravitam outros personagens que serão fundamentais em sua futura luta de invasão de fazendas e libertação de escravizados, personagens ricos e carismáticos como Budião, um dos responsáveis pelo fim do barão. E como no Brasil nada existe no vácuo e todas as classes em disputa vêm a estar conectadas pela violência negada de seu passado, Dafé vai se vincular a personagens que têm relação direta com Amleto, como a mãe rejeitada, dona Jesuína, e o filho Macário, militar que recebe a incumbência de caçá-la e acaba se apaixonando por ela.
No plano linguístico, o romance traz algumas das experimentais narrativas mais interessantes da carreira de João Ubaldo, um autor que, embora tenha uma veia experimental muito rica, não costuma ser muito lembrado por ela. Se é irregular devido à vasta extensão, Viva o Povo Brasileiro redime-se pela beleza de alguns de seus grandes momentos e pelo uso sofisticado da linguagem que também retrata, a seu modo, a própria evolução da Língua Portuguesa, castiça na voz dos personagens portugueses da fase mais antiga da narrativa, perfumada e colorida pelo idioma de negros e índios à medida que a trama avança em direção ao triste século XX.
Erico sendo muito claro
Incidente em Antares foi o último livro de ficção publicado por Erico Verissimo, em 1971. E foi saudado por muitos como um retorno ao universo que ele dominava como ninguém depois de O Senhor Embaixador e O Prisioneiro. Como lembra uma das grandes especialistas na obra de Erico Verissimo, a professora da UFRGS Maria da Glória Bordini, no seu estudo Criação Literária em Erico Veríssimo, a chegada desses dois romances foi recebida com muitas dúvidas a respeito da autenticidade do que Erico poderia ter a dizer sobre assuntos complexos dos quais ele não tinha conhecimento em primeira mão, a revolução cubana e a guerra do Vietnã. Em Incidente em Antares, Erico parecia ter voltado ao mundo da pequena cidade gaúcha fictícia que era agora sinônimo de sua literatura após o ciclo épico O Tempo e o Vento. Só que, e esse é um elemento importante para a análise, Erico criou Antares não como uma nova Santa Fé, mas como a Santa Fé que o pessoal mais devagar se recusou a compreender. Incidente em Antares é Erico usando a sátira mais feroz já escrita por sua pena e o realismo mágico que era moda naquela época para desconstruir até mesmo seu principal trabalho.
A trama enfoca o “famoso incidente” que tem lugar em dezembro de 1963, no qual uma greve geral com a participação dos coveiros impede o sepultamento de sete pessoas de formações e classes sociais diferentes que, por coincidência, morreram naquele mesmo dia. Os sete defuntos formam um grupo bastante heterogêneo: da rica matriarca de uma família tradicional do lugar, Quitéria Campolargo, à prostituta Erotildes, uma mulher miserável que morreu vítima da tuberculose por não ter tido acesso a atendimento médico. De Cícero Branco, advogado de prestígio responsável por fazer o acobertamento de muitas das maracutaias da elite local até Barcelona, sapateiro anarco-sindicalista. Completam o grupo um bêbado assassinado pela mulher, Pudim de cachaça; o pianista Menandro Olinda, professor de música traumatizado por um fracasso artístico do passado; e o jovem João Paz, ativista que, por alegações de subversão, é torturado até a morte pelas forças da repressão na cidade.
Revoltados com seu abandono à porta do cemitério, os mortos passam uma última noite em uma marcha pela cidade, tentando resolver pendências ou despedir-se de pessoas queridas e, ao final da jornada, já durante o dia, reúnem-se no coreto da cidade, no qual realizam um julgamento Implacável das hipocrisias e das falhas grotescas que formam o verdadeiro tecido daquela sociedade aparentemente tão calma e tão pacata.
Desconstruindo Erico
Homem de maneiras sóbrias e com um temperamento reservado e pouco afeito às explosões bravateiras do gaúcho estereotipado, Erico viu ao longo de sua carreira vários elementos do seu trabalho serem apropriados justamente para justificar esse comportamento ao qual ele tinha muitas reservas. É assim, por exemplo, que o Capitão Rodrigo, foi transformado numa espécie de imagem arquetípica de um gaúcho ideal – inclusive pela ideologia dos centros de tradições gaúchas – esquecendo-se que Erico também o retrata como um homem inconstante, um péssimo marido, um sujeito volúvel em muitos dos seus apetites e com um comportamento irresponsável incorrigível – que termina por selar sua morte na batalha final contra os Amarais.
Pois em Incidente em Antares o “incidente” do título só começa a ser narrado a partir da segunda metade do romance. Até ali a obra faz uma grande revisão histórica da fundação e da trajetória da cidade de Antares, dos seus personagens políticos mais influentes e de como isso se coordena com o panorama maior da história do Rio Grande do Sul. Ao tomar a decisão arriscada de apresentar um panorama que poderia ser confundido com algo que já havia feito em O Tempo e o Vento, Erico decide abraçar a sátira feroz e faz questão de ter certeza de que nenhum leitor desta vez vai arranjar motivos para amenizar os comportamentos dos seus personagens ou enxergá-los como heróis. O tom épico que havia dotado de uma certa gravidade heroica a rivalidade entre os Terra Cambará e os Amaral, em Incidente, ao falar da rivalidade entre os Vacarianos e os Campolargos, é substituído por um rol de crueldades mesquinhas e desumanas entre as facções em disputa. Em vez da gravidade de “O Tempo e o Vento, o que se tem aqui é uma descrição escandalosa e por vezes até cômica de desmandos e barbarismos perpetrados pelos caudilhos que vão se sucedendo como patriarcas das respectivas famílias e que são, todos, figuras detestáveis.
O Coronel Vacariano não é o carismático Toríbio Terra Cambará de O Tempo e o Vento – é, na verdade, um bravateiro hipócrita metido em amplas negociatas que adora criticar a corrupção dos partidos de oposição, faz-se de muito macho e leva a mão ao revólver por qualquer motivo, mas que, na única cena em que de fato precisa participar de uma altercação física contra os sindicalistas que estão montando um piquete na frente do cemitério, é facilmente desarmado e vencido. A política miúda de província, aquela mesma que, em O Tempo e o Vento, havia gerado um personagem rico e complexo como Rodrigo Terra Cambará, em Incidente… dá origem a uma elite conservadora e arraigada aos seus preconceitos de tal modo que está disposta a qualquer golpe, inclusive político, para mantê-los.
Uma conclusão
Não é surpresa para ninguém que esses mesmos temas continuem na ordem do dia 50 anos depois, uma vez que Erico escreve Incidente em Antares como uma resposta direta aos desmandos dessa ditadura militar de 1964 – hoje objeto de uma onda revisionista que tenta transformá-la em movimento legítimo e não mera quartelada. Quando os conflitos do livro são pacificados, os mortos voltam às suas sepulturas, o sepultamento ocorre e a sociedade volta a uma aparência de normalidade. É aí que começa a ser posta em prática uma brutal operação de apagamento de tudo que ocorreu – não por coincidência, chamada de “Operação Borracha”.
Essa tentativa de apagamento do “Incidente” é mostrada por Erico em paralelo com as tentativas reais de encobrimento, silenciamento e de supressão da dissidência durante aquela ditadura militar na qual o livro foi publicado. Diga-se de passagem, ele avança, o final do livro avança até o momento em que a ditadura já está instalada e, na última e emblemática cena, uma palavra escrita no muro “liberdade” está sendo apagada quando é lida por um menino que passa com o pai – como aponta Maria da Glória Bordini, a própria linguagem apagada na tentativa de repressão da história, algo que temos visto de modo sistemático neste Brasil de Bolsonaro – que, como qualquer um aí pode deduzir sozinho, não combina com Erico, João Ubaldo, arte sofisticada e visões de mundo complexas. Fica então, esse Brasil, relegado neste texto a um mero caça-cliques porque já tem gente demais falando nele para que eu me dê ao trabalho. Não há muito o que dizer, aliás, é só olhar pela janela. Considerando o histórico recorrente e sistemático de figuras sinistras sequestrando a noção de pátria para propósitos autoritários, o que nos resta para celebrar neste país é mesmo seu povo e sua arte.