A escala 6×1 é usada em diversas empresas que prestam serviços como motoristas de ônibus e cobradores, trabalhadores de shoppings, trabalhadores do comércio, supermercados, farmácias, entre outros. Diferente de empresas que concentram as 44h de trabalho entre segunda e sexta-feira, quem trabalha aos finais de semana assiste ao lazer de outros enquanto está trabalhando. “É só dá um rolê no fim de domingo e observar a cor dos que passeiam e a cor dos que estão servindo”, como diz o poeta e slammer Felipe Monteiro. A frase nos provoca a fazer o teste do pescoço. O teste, como o nome já diz, é sobre movimentar o pescoço e observar as pessoas que estão à sua volta.
Pessoas negras fazem o teste do pescoço constantemente, consciente e inconscientemente. Nas ruas, lojas, cidades, bairros, universidades, escolas, trabalho. Em qualquer lugar, o tempo todo, estamos observando onde estão as pessoas negras. Aprendemos este teste desde cedo, seja por incômodo por estar em espaços majoritariamente brancos, seja por refletir se determinado é um espaço minimamente seguro para estarmos.
A maior vitória da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do fim da escala 6×1 já aconteceu: pessoas trabalhadoras falando e refletindo sobre seus trabalhos, direito a descanso e saúde mental. Os trabalhadores estão refletindo sobre a desumanidade das jornadas de trabalho excessivas, sobre a divisão social e racial do trabalho, sobre quem pode descansar e estudar e sobre saúde mental. O fazem enquanto recolhem as bandejas da praça de alimentação do shopping após a refeição de seus patrões e seus familiares. O fazem durante a longa espera do transporte público aos sábados. O fazem quando o telefone desperta domingo de manhã e surge aquele pensamento intrusivo: “e se eu não for?”
A maior vitória da PEC não foi ter alcançado o número necessário de assinaturas para tramitar no Congresso Nacional. A maior vitória é a discussão, é colocar o tema nas ruas, nos almoços das famílias, nas rodinhas com os amigos, no cantinho do café no trabalho, nas salas de aula, etc. A maior vitória foi ter tocado o despertador de dentro da gente. Essa é a maior vitória de qualquer política pública: quando o público-alvo compreende, defende e toma para si determinada política.
Por alguns anos, eu fui a trabalhadora que nunca hesitou em trabalhar aos domingos de Carnaval, nos feriados de Natal e Ano Novo. Carnaval? Eu trabalhava. Páscoa? Eu trabalhava. Aliás, foi nessa época que descobri que domingo de Páscoa não é feriado no nosso calendário nacional. Os domingos eram meus dias de trabalho e eu descobri que no domingo de Páscoa eu não ganhava hora extra porque o feriado no calendário é apenas na Sexta-feira Santa. Levavam meu domingo de Páscoa sem me dar nem hora extra e nem bombom.
Mas a verdade é que eu não reclamava, eu gostava de trabalhar. Gosto de pensar que eu era a trabalhadora perfeita. Trabalhava aos finais de semana, não reclamava, fazia tudo que me pediam e ainda motivava as pessoas da equipe a fazer o mesmo. Eu vivia para o trabalho. O trabalho era minha alienação de mim mesma e meu passatempo.
Caso eu quisesse folgar em um final de semana inteiro, era difícil, mas não impossível, eu só precisava trabalhar direto sábado e domingo para conseguir folgar dali a duas semanas. Eu folgava aos sábados e trocava com a colega que folgava aos domingos. Trabalhava 13 dias direto sem folga para conseguir um final de semana inteiro. Foi assim, trabalhando direto por vários dias sem folgar, que consegui ir algumas vezes à praia.
Eu nem posso dizer que vivi ausente dos almoços de família, porque a maior parte da minha família também trabalhava nestas datas. Meus pais faziam escala 7×0 desde sempre, meus irmãos faziam escala 6×1 e, com sorte, todo mundo conseguia se encontrar à noite. Mas a verdade é que, no fundo, eu gostava de trabalhar direto e não folgar. Nos dias de folga, tinha que lidar com a cabeça vazia e os problemas pessoais da época. Esse é um outro ponto. O trabalho excessivo é também um escape para muitas pessoas. Ocupar a cabeça com trabalho é uma estratégia de quem não tem vontade e ânimo para viver e pensar sobre a vida indigna e medíocre que está colocada para as pessoas trabalhadoras.
A alienação de si é um conceito de Marx que reflete sobre a ocupação do trabalhador no trabalho. “Ocorre quando os trabalhadores percebem que seu trabalho nada acrescenta, pois qualquer outro pode fazê-lo. O trabalho deixa de ser algo em que o ser humano pode expressar sua essência e passa a ser algo que nega justamente a sua humanidade” (Silva, 2024). Ou seja, trabalhamos sem pensar e de forma lobotomizada. O trabalho que leva boa parte do nosso dia, onde o tempo restante pouco pode ser aproveitado em atividades que gerem algum lazer ou que coloquem nossos cérebros a “funcionar”.
Engraçado pensar que, quando no passado se imaginava um futuro cheio de robôs, não sabíamos que esses robôs seríamos nós mesmos.
A verdade é que o modelo de escala de trabalho 6×1 aprofunda desigualdades sociais e raciais. Aqueles que não possuem ensino médio completo e pararam de estudar para trabalhar e sustentar a família, dificilmente encontraram tempo para estudar, melhorar suas qualificações e mudar de vida. Este é o meu caso. Consegui concluir o Ensino Médio através do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que em 2009 certificava a conclusão do ensino médio, certificação que é feita pelo Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) atualmente. Quando entrei na faculdade, passei a refletir sobre essa carga horária exaustiva e decidi que não trabalharia nem 44 horas semanais, nem escala 6×1. Precisei unir a renda do estágio com trabalhos freelancer nos finais de semana no Auditório Araújo Vianna. Faltei a inúmeras aulas para ir trabalhar, mas pelo menos eu assistia a alguns shows legais. Saía das aulas e atendia à noite colegas e professores. Enquanto trabalhava, servia ao lazer de outras pessoas. Foi assim que obtive a graduação em Administração em 2021. Eu já não era mais a trabalhadora alienada que entrou no mercado de trabalho e “vestiu a camisa da empresa”, como em 2008. Ironicamente, com a carteira assinada em um dia 1º de Maio, dia do trabalhador.
O modelo de escala 6×1 tira de nós, Homo sapiens, o que temos de mais precioso: a capacidade de desenvolver raciocínio lógico e crítico. Vivemos exaustos e sem vontade e ânimo para nada. Vivemos “no automático”. Por isso, reitero que a maior vitória do avanço da PEC do fim da escala 6×1 é fazer com que nos desacomodemos e reflitamos sobre nossas condições de trabalho.
Qualquer empresa ou instituição que está ignorando o debate está fazendo intencionalmente. Repito: qualquer empresa que não colocou a PEC do fim da escala 6×1 em discussão não o faz porque sabe que essa discussão liberta os trabalhadores. Empresas que possuem comitês de sustentabilidade, diversidade, saúde mental e bem-estar e não estão com a escala 6×1 na pauta, não estão preocupadas com nenhuma destas questões. Isso inclui empresas que possuem ou não esta escala, afinal, é momento de se posicionar.
Por fim, me sinto otimista e feliz por presenciar este debate e mobilização que pode verdadeiramente transformar nossa sociedade. Discussões já superadas em países do Norte global tendem a ganhar força no Sul global e o Brasil, além de pioneiro, pode impactar diretamente os modelos de trabalho de outros países da América Latina.
Referência:
Da Silva, Italo Henrique, 2024. Alienação do trabalhador: um olhar histórico e sociológico.
Mariana Pedroso é administradora (UFRGS), mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS) e mestranda em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento (UPO-Sevilla). É pesquisadora e consultora em diversidade, equidade, inclusão e associada Odabá. @maritocracia
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