Tenho poucas memórias de quando era criança. Mas lembro de uma mãe muito ocupada, que sempre estava fazendo alguma coisa, que era risonha e bonita.
Um dos episódios que ficou marcado na nossa história familiar foi de uma vez que ela tentou aprender a andar de motocicleta sozinha, e acabou batendo na parede da casa da vizinha de frente. Ainda bem que nada de grave aconteceu com ela, apenas escoriações!
Na minha adolescência, foi a professora do grupo de dança e coral da escola. E lá estava eu, saracoteando junto, em ensaios e em todos os tipos de eventos do município de Esteio. Outra lembrança, é dela se apresentando com os grupos para o então presidente João Batista Figueiredo na Abertura da Expointer.
Morando em Porto Alegre, a mãe teve casa na praia de Capão Novo, depois chácara no interior de Cerro Grande do Sul, mais tarde casa em Tapes, sempre plantando muitas flores, árvores frutíferas, hortas, empreendendo transformações, seja nos imóveis ou na topografia dos terrenos. Sem medo de enfrentar pó, barro, caliça.
Já avó das minhas filhas, ela mesma fazia jogos, desenhava fichas, carteados, resgatando seus tempos de professora primária, para ajudá-las a estudar, recebendo na sua casa com o que cada uma mais gostava de comer e mandando uma “marmitinha” na volta, para caso quisessem comer mais um pouquinho.
Foi essa mulher inquieta, criativa, amorosa, independente, voluntariosa, que meus irmãos e eu descobrimos que estava adoecida aos 65 anos. Num processo que durou vários anos. Dessa mulher “a mil pelo Brasil”, ela passou a precisar de bengala, andador, cadeira de rodas até ficar acamada. E foram anos complicados.
Desse tempo, ficam aprendizados sobre os momentos de medo, de ansiedade, de celebração, de afeto. Penso que os mais difíceis foram aqueles quando enxerguei em mim coisas que não gostava, as dificuldades de lidar com o que ocorria com a mãe e com os meus sentimentos. Tinha muita dificuldade de entender quando ela escolhia algo para si mesma diferente (e, às vezes contrariando muito) do que eu e meus irmãos desejavam ou o que os profissionais de saúde orientavam pra ela. Até compreender que minha mãe não era minha filha, mas uma pessoa adulta, autônoma na sua vontade e, portanto, podia e devia escolher se queria ou não fazer, levei muito tempo. E que apesar de ser filha, cabia respeitar, mesmo discordando. Mas como isso é difícil! Por um bom trajeto deste período, projetei nela o que pensava que ocorreria comigo: adoecimento (será?), envelhecimento (tomara!), morte (com certeza). Dando o devido tempo (mas nem sempre tendo paciência), com terapia, com compaixão e com estudo, fui e ainda estou nessa caminhada (e isso me levou pra uma guinada na vida, mas isso já é outra história).
Para cuidar da mãe, meus irmãos e eu percebemos que precisávamos nos organizar. E, com o passar do tempo e as dificuldades do quadro aumentando, essa organização foi ficando cada vez mais complexa e a gente foi se “profissionalizando”: levar às consultas médicas, organizar os medicamentos, manter contato e alinhada à equipe de saúde (equipe de médicos, fisioterapeuta, psicóloga), acompanhar aos exames, amparar durante as internações hospitalares, organizar a casa e cuidadoras, fazer as compras, cuidar do equilíbrio financeiro e de toda a burocracia da vida dela. Tarefas que requerem muito tempo na agenda, disponibilidade emocional, além de amplo conhecimento e uma rede de conexões de profissionais.
Foi um período de experimentar um novo tipo de relação familiar. Por exemplo: criamos grupos onde a mãe não participava porque necessitávamos discutir aspectos da vida dela e formas de abordá-lo reservadamente primeiro. A nossa relação fraterna precisou se fortalecer para que pudéssemos lidar com o que acontecia e se organizar frente ao que vivíamos com a mãe da forma mais sadia e coesa possível.
Para chegarmos a um bom termo, felizmente, contava com meus irmãos para compartilhar todas essas responsabilidades (sei que essa não é a realidade de todas as pessoas e que, no futuro, será de um número ainda menor). Entre nós, tínhamos um acordo silencioso para mantê-la autônoma, independente e com o maior tempo de qualidade de vida possível. Essa é uma equação que não é fácil de conseguir, já que a cada escolha há uma consequência, em especial com a proximidade da morte.
O gatilho pra esse texto foi uma série conversas que tive com amigos nas últimas semanas, para ser justa, mulheres na grande maioria, que estão sofrendo como eu sofri com o cuidado de seus pais e mães idosos. Na verdade, tios e avós também entraram nessas histórias.
Na universidade aprendemos a ser engenheiros, médicos, chefs de cozinha. Atualmente, já temos quem nos ensine a ser pai e mãe. Está na hora de a gente abrir a possibilidade de aprender a ser filhos de pais idosos. Afinal, são muitos e são grandes os desafios que nos colocam quando precisamos cuidar de nossos pais, e a energia emocional que a gente investe é enorme.
Em todas as relações familiares há espaço para amor e também muita dor. Nesse momento de cuidado dos pais idosos, questões antigas entre pais e filhos ou entre irmãos podem vir à tona, assim como questões internas com relação ao nosso próprio envelhecimento e finitude. Ter a chance de falar e entender o que dói e escutar o outro, com acolhimento, provoca alívio. Aprender como fazer com o que nos atrapalha na organização da vida com os pais e saber que não se está sozinho nessa confusão, também alivia. Por isso, enquanto não se institui uma educação para o envelhecimento desde a infância (como prevista no Estatuto do Idoso), penso que poderíamos pensar na criação de uma “Escola para Filhos”.
Se você é mais jovem, mas chegou até aqui nesse texto. Te convido a pensar no planejamento do seu envelhecimento e a conversar com seus pais a respeito desse assunto. Isso pode disparar uma série de reflexões importantes para o futuro de vocês.
Era uma manhã nublada de sexta-feira e os médicos nos chamaram para dizer que não tinham mais o que fazer. Todos os recursos já tinham sido utilizados. Perguntaram se queríamos levá-la para UTI onde provavelmente teria uma sobrevida, graças aos aparelhos e sondas que seriam introduzidos nela. A gente não tinha conversado sobre o assunto com a mãe. Mas concordamos que para aquela mulher cheia de sorrisos, vontades, autonomia, e que fez a vida como queria, sua morte também precisava ser quando bem entendesse. Escolhemos por deixá-la sedada e com a família por perto, até o final.
Karen Garcia de Farias é articuladora do Coletivo POA Inquieta, Embaixadora do Movimento Lab60+, Consultora na Longevida. Graduada em Comunicação Social, Pós-Graduada em Marketing pela ESPM, Pós-Graduanda em Neurociência e Comportamento pela PUCRS.
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