Por muito tempo, assim como Cazuza, achava que muitos de meus heróis haviam morrido de overdose. Hoje, nem creio que eles eram tão heroicos assim. Agora, se penso bem, a verdade é que me desencontrei das minhas heroínas e heróis. Ou, melhor dito, elas foram ocultadas pela história tão machista e embranquecida que nos impuseram nos bancos escolares e acadêmicos.
Neste momento, trabalho para encontrá-las refazendo alguns percursos formativos. Este foi o modo em que achei – e me achei – na obra de Lélia Gonzales. Intelectual negra tão necessária para o pensamento interseccional brasileiro atual, apesar de já falar em racismo e sexismo ainda no final dos anos 1970. E, mais recentemente, estou me conectando com a obra de Milton Santos; advogado que escolheu a geografia como disciplina para reinventar novas epistemologias, trazendo a inquietude de quem não vê disciplinas de modo estático e tampouco se sossega com o mundo do jeito em que está. Falecido em 2001, sua obra ainda é muito fresca, então, só posso celebrar esse nosso encontro, mesmo tão tardio. Antes tarde do que mais tarde, o encontrei a partir de um livro que estava na biblioteca que herdei de meu avô, o que dá o tom de uma sensação de curiosa indicação póstuma. Editado em 2012 pela Fundação Ulysses Guimarães, a obra se chama: O espaço da cidadania e outras reflexões. Fica o convite.
Cada antigo artista e intelectual negro que encontro nessa empreitada de recuperação me traz um sentimento misto de alegria e, ao mesmo tempo, de roubo. Como tantas mulheres negras de minha geração, tive uma infância intoxicada por xuxas, angélicas, sítio do pica-pau amarelo e, na escola, uma apresentação reiterada das pessoas negras como escravizadas, descendentes de escravizadas e nada mais. Os eternos coitados e desvalidos do mundo, fim do assunto.
Na faculdade, uma bibliografia europeia e estadunidense me formaria psicóloga, apesar das experiências práticas de estágio já apontarem que esta só podia ser uma grande inconsistência. Anos depois, com as políticas de cotas, não bastaria inundar os bancos acadêmicos de pessoas negras, mas era importante – e ainda é – que nos devolvessem nossos mestres e griôs. Antes negligenciados, roubados e escondidos, esses mestres passaram a ser exigidos na academia, em uma bibliografia que urge enegrecer se a queremos verdadeiramente brasileira. É conteúdo e forma em ação na devolução de lugares simbólicos.
Na mesma medida, vale observar se a suposta escola antirracista de seus filhes tem funcionários e professores negros e indígenas em espaços formativos e de decisão. O mesmo vale para pessoas neurodivergentes, LGBTQIAPN+ e com deficiência. Ocupar nossos lugares de direito – simbólicos e de decisão – é urgente, porque não nos queremos nem miseráveis, nem heróis tardios, mas, tão somente a humanidade que cabe a qualquer uma.
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Foto da Capa: Mural em homenagem à Lélia Gozalez / Tayná Tomás Sampaio / Divulgação