Uma empresa que usa mão de obra em condições análogas ao trabalho escravo pode ser considerada sustentável?
Essa é uma pergunta que eu já fiz muitas vezes em palestras e cursos. Com pequenas variações, como uma empresa com chefes autoritários ou onde se pratica o assédio. Mas a questão surgiu de novo em minha mente após a descoberta de dezenas de trabalhadores em condições deploráveis de trabalho em vinícolas situadas em Bento Gonçalves e Garibaldi.
Muitas pessoas ainda têm uma visão de que a sustentabilidade é ambiental. É claro que esse aspecto é muito importante, mas não é o único. Ainda lá no século passado, John Elkington lançou a ideia que seria popularizada como triple bottom line, geralmente chamada de tripé da sustentabilidade em português: ambientalmente sustentável, economicamente viável e socialmente justo. Para ser considerado sustentável, um produto ou serviço deveria manter essas três variáveis em equilíbrio.
Essa ideia foi sendo ampliada. Ignacy Sachs, por exemplo, aponta a existência de outras 5 dimensões da sustentabilidade: política (nacional e internacional), cultural, ecológica e territorial. A evolução dos costumes trouxe a discussão para dentro das organizações: empresas, governos ou escolas são cobrados a se posicionar.
Exige-se, da mesma forma, um compromisso com a diversidade, seja pela inclusão das pessoas com deficiência, buscando a igualdade de gênero e raça e oportunizar um tratamento igualitário às pessoas independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
As empresas que tinham trabalhadores em condições de trabalho similares ao escravo sabiam disso. A Vinícola Aurora diz que a sua gestão está baseada no conceito da triple bottom line. Inclusive, ostenta o selo “Great Place to Work”. De modo semelhante, a Salton diz que, para a empresa, a sustentabilidade se baseia “em três pilares estratégicos: Produção Sustentável, Relacionamentos Prósperos e Governança ESG”. A Garibaldi ostenta uma linha de produtos orgânicos e biodinâmicos.
Nada disso combina com jornadas exaustivas, violência contra trabalhadores, alojamentos insalubres e fornecimento de comida azeda para as refeições. Isso sem falar do racismo e da xenofobia, como contou um trabalhador gaúcho: “só os baianos apanhavam”. Os relatos ainda falaram de um clássico da chamada escravidão moderna: os trabalhadores assumem uma dívida pelos gastos com o transporte que vai aumentando pois eles só podem comprar alimentos no armazém que o dono permite. Claro, que os preços são superfaturados: 1 quilo de feijão custava 22 reais.
Como em muitos casos semelhantes, a culpa é jogada em empresas terceirizadas e a beneficiada com o trabalho forçado diz que não sabia de nada. Como disse Fabio Alperowitch:
“As empresas, como sempre, alegam que nada sabiam, refutando as alegações e condenando veementemente a prática. Afinal, tratava-se de terceirizados.
Retomo aqui a discussão que já trouxe tantas vezes: a responsabilidade na cadeia. É inadmissível que empresas se escondam atrás de suas cadeias de suprimento para fomentar práticas criminosas e de violações de direitos humanos.”
Ora, a terceirização não é um salvo conduto para o “vale tudo”, havendo a responsabilidade da empresa pela cadeia de produção que a sustenta.
Utilizando como exemplo o caso da Zara, de 2011, como discutido na CPI do Trabalho Escravo da Assembleia Legislativa de São Paulo, uma das formas de se combater o trabalho forçado seria a vistoria nas terceirizadas. E, no caso da gigante espanhola, evitar as subcontratações que resultaram em empresas “quarteirizadas” e “quinteirizadas”, fazendo com que sua cadeia produtiva se torne um emaranhado que dificulta ou inviabiliza a fiscalização.
E aí temos outro ponto importante: as cadeias produtivas devem ser transparentes. Negócios sustentáveis são transparentes, o que possibilita a rastreabilidade. Um produto sustentável deve permitir que suas origens sejam rastreadas, deve contar a sua história.
Trabalho análogo à escravidão não combina com sustentabilidade, não importando o que o site ou estratégia ESG da empresa dizem. No final, mais do que responsabilidade jurídica ou notas para a sociedade, o que conta é não virar a cara para o sofrimento alheio e, para isso, não existe terceirização.