Tem gente que acredita em destino. Eu não. Pra mim, o que existe é um gigantesco cardápio de acasos. Diários, o tempo todo. Dele, selecionamos: me serve, não me serve, sorte, azar. E assim vamos montando nossa história como uma coleção de retalhos recolhidos no dia a dia.
Não estou dizendo que somos vítimas do acaso, como folhas ao vento. Não. Cedo aprendemos a buscar os lugares onde acasos chamados de sorte têm mais chances de acontecer. Ou, como preferem alguns, o azar. Os psicanalistas sabem bem disso… Na verdade, alternamos entre uns e outros em alguma medida. Falo de chance, não certeza. Não dominamos o futuro, mas temos um tino para nos orientar na vida. Acho que alguns chamam isso de carma, nada a ver com destino.
Escrever sempre foi para mim um prazer. Depois da bicicleta e do autorama, o melhor presente de que tenho lembrança foi uma máquina de escrever. Tinha um fascínio por aquele mecanismo mágico que marcava o papel com um baixo-relevo e ainda deixava uma tinta indelével ali. Quantas vezes não toquei naquelas teclas como se fosse um piano! Até parecia música para meus ouvidos. Infelizmente, do papel, não saía nada que fosse possível ler. Quem escreve sabe, a gente passa mais tempo lendo as próprias letras do que as escrevendo.
Escrever é arte complexa. É como se emitíssemos um extrato da alma. Não se tem bem certeza do que se vai encontrar, por mais que tenhamos uma ideia do que depositamos ali. Às vezes vem com juros e correção monetária. É a glória!
Comecei com cartas para meu avô distante e logo amores longínquos. Amar à distância me garantia esse duplo prazer. Casei com uma paulista, nem preciso dizer… Depois das cartas, vieram os e-mails, as cartas eletrônicas. Os profissionais cada vez mais ocupando o lugar das amizades. Neles eu tinha um segundo prazer, a estética gráfica. Carta, ofício ou o quê? Para cada um, um estilo. Consegui muita coisa na vida, tenho certeza, pela dedicação à minha correspondência. A dúvida é se foi pelo conteúdo ou pela estética — pela geometria das margens, perfeitamente alinhadas. Assinatura a certa distância, mais para a direita do que no centro. Um deleite!
A vida acadêmica deu vazão a outro tipo de escrita. A das normas da ABNT na mochila. Eu gostava, e ainda gosto, mas sentia falta da liberdade de teclar em busca de música. Às vezes fazia uma crônica, um poema escondido. Seria muita ousadia mostrar. Nunca publiquei, até que a sorte me trouxe Luiz Fernando Moraes a pedir, por indicação de Luis Carlos Macchi, para eu assinar uma coluna semanal aqui na Sler. Isso em 2022. Nem pensar, era a resposta pronta, mas acabei aceitando alternar, semana sim, semana não, com o amigo e também arquiteto Maturino Luz, o outro indicado pelo Macchi. Nossa missão era escrever sobre arquitetura e urbanismo.
Sou apaixonado pela cidade, lugar de produção do conhecimento, da arte e da diversidade. Artefato que deixou de ser essencialmente histórico e cultural para se transformar em mercadoria. Suas referências de memória, edificadas ou não, passaram a ter valor venal, viraram matéria-prima de uma indústria imobiliária voraz. A riqueza da cidade já não é valorizada pela sua história e suas belezas em arte e arquitetura, pela qualidade do transporte público ou pelo bem-estar da sua população, e sim pelo seu PIB e outros índices econômicos que não se traduzem em benefícios para a população. É preciso escrever sobre isso. Esse foi o propósito que assumi.
Sessenta colunas depois, estou aqui hoje para agradecer a vocês, meus leitores. Diferentemente de fazer arquitetura, que é uma arte praticamente invisível no nosso meio, escrever traz um retorno surpreendente. As pessoas comentam que te leram, trazem sugestões de assuntos, fazem comentários, críticas. E tenho a sorte – olha eu falando nela outra vez – de receber elogios que me enchem de responsabilidade e servem como um estímulo/desafio para a coluna seguinte. Há um diálogo entre nós.
A minha maneira de festejar esses mais de dois anos de coluna é convidá-los para o lançamento do meu primeiro livro de crônicas, Cidade Abstrata, na 70a Feira do Livro de Porto Alegre.
Dia 18 de novembro, às 17h, na Sala O Retrato do Espaço Força e Luz, e às 18h na Praça de Autógrafos.
A edição é da Libretos, a orelha de Julia Dantas, o prefácio de Ruth Verde Zein e ainda tem fotografias das feras Fabio del Re, Eduardo Aigner, Mário Fontanive e Martin Streibel. Luiza Rabello soube juntar tudo isso num design lindo, lindo. Espero vocês!
Todos os textos de Flávio Kiefer estão AQUI.