Fiquei emocionada, na semana passada, lendo Luciane Slomka e Carlos André Moreira (e em extensão, Júlia Dantas) sobre Narrativas, a partir de toda essa tragédia que vivemos. É um tema vasto e extremamente importante, de fato. Por isso, hoje me junto a meus colegas para explorar um pouquinho mais deste processo de escrita. Pode ser um poderoso remédio para o enfrentamento da nossa nova realidade.
Quando eu era criança, nos anos 60, chegavam vendedores ambulantes em nossa casa, no topo de um morro na Zona Sul de Porto Alegre, com o deslumbrante Guaíba à vista por onde singravam navios e veleiros. Eles eram portadores de mundos desconhecidos. A chinesa compacta, suando, carregava uma mala, quase maior que ela, com as maravilhas mais maravilhosas do bordado oriental. Toalhas de mesa delicadíssimas, guardanapos, echarpes de seda e panos variados, cada peça uma viagem ao leste do planeta que nem bem imaginávamos. Outro, um mágico engravatado, senhor das palavras, certa feita nos trouxe não só um livro vermelho, mas uma coleção vermelha inteira. A Enciclopédia Barsa, que meu pai comprou sem hesitar e nos proporcionou o mundo a partir da estante. Um mundo não só de informação, mas de ideias dos grandes pensadores. A Barsa foi a primeira enciclopédia brasileira, idealizada pela herdeira da família Barrett, detentora da Enciclopédia Britânica, desenvolvida por um corpo editorial com o porte do enciclopedista e tradutor Antonio Houaiss, o escritor Jorge Amado, o arquiteto Oscar Niemeyer e o jornalista e escritor Antônio Callado, dentre outros. Fascinava até só de olharmos a fileira de livros vermelhos e densos.
Livros eram abundantes em nossa casa e desde cedo vivi em suas páginas, (re)construindo-me junto a narrativas e personagens. Se hoje eu também os escrevo, é porque sinto necessidade de fazer parte desta teia, que não tem início nem fim. Vidas que se contam em cada experiência de passado e futuro desenhadas no agora, que tudo pode. As histórias que ficavam enclausuradas no papel, hoje fluem na nuvem. Conectam-se todas as histórias que a humanidade já foi capaz de narrar, no magnífico sentido do Todo. Escrever histórias é (re)criar mundos e intercambiá-los, conscientes que somos da inter-relação de todas as coisas.
Grande contadora de histórias, a escritora dinamarquesa Isak Dinensen disse que “todas as tristezas podem ser suportadas se você as colocar em uma história ou contar uma história sobre elas”. A escrita data anterior à escrita, com histórias vividas, percebidas, outras contadas oralmente, transmitidas de geração a geração, com suas releituras, que vão abarcando novas experiências, as misturando e projetando. Cores primárias gerando nuanças, num pantone inesgotável e deslumbrante. O escritor James Joyce certa vez disse a Carl G. Jung que achava sua filha esquizofrênica muito parecida com ele, ao que o psiquiatra respondeu: “De fato, deve ser. Mas ali onde ela se afoga, você escreve”.
O processo de escrita pode curar, sim. Vivi essa experiência ao escrever o livro Mulheres Cérebro Coração, sobre estilo de vida e saúde da mulher. Foi a minha maneira de enfrentar as longas doenças e as mortes, quase ao mesmo tempo, do meu único irmão e do meu pai, e a decaída vertiginosa da minha mãe. No medo de enfartar, mergulhei na escuta das doenças cardiovasculares e seu universo de causas e consequências. Uma nova percepção se abriu e me fortaleci. Desde então, inaugurei um novo tipo de escrita com a trilogia O gênio poético, permeada por insights, imagens e sons que vão emergindo das profundezas do meu Ser. É um tipo de narrativa reflexiva, multimídia, que explora a vida com atenção. Um mergulho no desconhecido, um despir do “eu”, do ego, na compreensão de nós mesmos e do outro além do que julgamos saber.
Algumas vezes, ao final das muitas entrevistas que já fiz como jornalista, as pessoas me disseram que se sentiram, em nossas longas conversas, como se tivessem feito uma sessão de análise. Não é de surpreender, pois a verdadeira atenção na escuta é o princípio da psicologia e também o do jornalismo. Eu tenho o desejo da escuta e gosto de investigar. Quando ultrapassamos o factual, alcançamos a singularidade das pessoas. Uma escuta do conjunto, das experiências, percepções e potencialidades, da vivência humana no espaço e no tempo. É o que entendo também como escrita biográfica. Contar histórias de pessoas e grupos humanos, seus lugares, de terra e de água, de mar, de sol e de vento, de amor – escuta que se amplia na entrevista e na pesquisa.
Cada história pessoal é um épico dos bilhões de anos de construção do que somos. Pode ser comparada também a um romance, um filme, com trilha sonora singular. Um relato de Ser, alegria e tristeza de existir, pulsão de vida e pulsão de morte, caminhar no espaço e se perder no tempo dos fios estendidos ao infinito. A escuta significa ouvir e ver não só com a mente, mas com o coração e sua força eletromagnética.
Hoje tenho vontade de escrever junto com as pessoas, a quatro, a seis, a dez mãos e ouvidos, uma obra partilhada por palavras, imagens, sons e emoções que vamos desbravando e contextualizando juntos. Neste momento absurdo de nossas vidas ao Sul do lado debaixo do Equador, me parece ainda mais oportuno escrevermos juntos – mesmo quando separados fisicamente, conectados em propósito e significado. Obrigada, Luciana e Carlos André e Júlia!
*Vera Moreira foi repórter e editora no Diário do Sul e Zero Hora, em Porto Alegre, e Estadão, Jornal da Tarde e Dinheiro Vivo (Jornal GGN hoje), em São Paulo. Foi agente literária de Sergio Faraco, com quem organizou o livro Decálogo do perfeito contista. Autora de Mulheres, Cérebro, Coração.
Foto da Capa: Freepick / Gerada por IA
Leia também de Vera Moreira: Trem POA/Gramado ganha novo apelo