Esforços olímpicos é um romance publicado no Brasil em 2021, de autoria da escritora americana de ascendência taiwanesa Anelise Chen (Todavia. Tradução de Rogerio W. Galindo). O título da obra comporta um duplo sentido que é uma chave importante para a leitura: “esforços olímpicos” podem se referir tanto às proezas atléticas de competidores durante os Jogos Olímpicos da era moderna, tema de uma tese acadêmica que precisa ser concluída pela protagonista do livro, quanto ser uma expressão metafórica para os “esforços olímpicos” que a personagem precisa fazer para encontrar forças em um momento de crise depressiva e insegurança intelectual.
Primeiro romance de Chen, publicado originalmente em 2017, o livro é narrado em primeira pessoa por uma personagem chamada Athena Chen, que poderia ser tomada como um alter-ego disfarçado da própria autora. A protagonista está cursando nos EUA um programa de pós-graduação e precisa concluir a sua tese sobre o esporte como representação e ritualização da vida. Ela é uma ex-nadadora profissional que abandonou o esporte competitivo por motivos que nos vão ser apresentados ao longo do livro e, na Universidade, vem evitando seu orientador porque as anotações que andou recolhendo para a tese são uma maçaroca algo desconexa e indiscernível, sem a menor semelhança com uma linha mestra de argumentação.
A dificuldade da personagem de concluir seu trabalho não passa apenas pela síndrome de impostor ou pela conclusão de que sua pesquisa não chegou ao resultado que ela havia imaginado no início. Há também a questão pessoal de um luto mal resolvido, já que ela também recebeu há pouco a notícia de que um ex-namorado, também ex-atleta, cometeu suicídio. Além de narrar os esforços cotidianos para não ceder e não vergar ao peso da melancolia, a narradora intercala no texto pílulas e trechos de anotações ensaísticas com reflexões feitas por grandes intelectuais a respeito da natureza própria do Esporte e de como ele evoluiu de uma espécie de ritualização do combate ou da disputa inerente à vida para as modalidades que conhecemos hoje.
Romances de tese 2.0
É um livro que pode ser facilmente vinculado a uma vertente recorrente da literatura que eu gosto, de sacanagem, de chamar Romance de Tese 2.0, livros que são parte romance, parte ensaio, parte autoficção sobre os esforços não olímpicos, mas acadêmicos, de um protagonista que luta para concluir uma graduação ou titulação acadêmica, esforços que muitas vezes espelham os do autor ao construir sua obra. Chamo de Romance de Tese 2.0 porque não são os verdadeiros “Romances de Tese” bem conhecidos na história da literatura, obras nas quais a trama ficcional é colocada a serviço de uma tese do autor, um pensamento doutrinário oriundo da Filosofia, da Biologia, da Sociologia, da História. Nesse tipo de romance, as inter-relações entre as personagens nascem de determinadas causas e produzem determinados efeitos inevitáveis porque são exemplos ficcionais da tese que o autor está defendendo. Podemos dar de exemplo um dos espécimes mais famosos, o grande Ciclo dos Rougon-Macquart que se espalha por 20 livros escritos por Emile Zola, um dos mestres do grande Realismo europeu do século XIX. Zola lançava mão do cientificismo de sua época para criar obras nas quais os impulsos e vontades dos seus personagens muitas vezes não lhes pertencem, mas são resultados inescapáveis das condições sociais em que vivem.
O que eu chamo de Romance de Tese 2.0 é uma modalidade de ficção atual, mais anêmica e pálida, sobre um personagem que está tentando de fato escrever uma tese para obter grau acadêmico. Esse elemento é usado na narrativa como espelho de alguma dificuldade pessoal particularmente grave enfrentada pela personagem. Esforços olímpicos é um livro desse tipo, juntando-se a uma lista que abarca também Juventude, de J.M. Coetzee (Companhia das Letras, Tradução de José Rubem Siqueira), A trama do casamento, de Jeffrey Eugenides (Companhia das Letras, Tradução de Caetano W. Galindo), Estação Atocha, de Ben Lerner (Rádio Londres, tradução de Gianluca Giurlando), ou Os amantes, de Amitava Kumar (Todavia, tradução de Odorico Leal).
Nas partes “ensaísticas” do livro, a narradora apresenta citações sobre o caráter do esporte que, de certo modo, espelham os dramas pelos quais ela passa não apenas na escrita da tese como na administração da própria vida. Talvez por isso ela fale muito mais de esportes individuais do que de modalidades coletivas. Ela trata muito de natação, por exemplo, esporte no qual a personagem competiu profissionalmente no passado, mas também menciona a corrida e o próprio espírito dos corredores no momento em que o corpo chega ao seu limite e é necessário tomar a decisão complicada de continuar até a exaustão completa ou desistir e se sentar à beira do caminho.
São esses também os dois impulsos em conflito na personagem: a conclusão da tese, mesmo diante de uma anomia paralisante, em um meio universitário bastante competitivo, e a vontade desesperada de simplesmente desistir. Numa nota colateral, não deixa de ser a mesma aproximação, executada de modo diverso, que Haruki Murakami faz ao aproximar a corrida como exercício do esforço intelectual e mesmo físico exigido de um escritor de prosa de longo curso, como um romancista, no seu livro Do que eu falo quando falo de corrida (Companhia das Letras. Tradução de Cássio de Arantes Leite, 2010.
O ethos do esporte
Outro tópico abordado pela autora no romance é um certo ethos particular das regras do esporte. Não apenas cada modalidade esportiva tem suas próprias regras específicas, como o campo como um todo segue um corpo doutrinário mais ou menos bem estabelecido, no qual se valoriza e se premia esforço individual, espírito de equipe e força de vontade – não deixo de pensar que talvez esteja aí a razão pela qual, no Brasil, vimos tantos atletas e ex-atletas alinhar-se ao discurso de conservadores ou de reacionários em geral. O atleta vê o mundo pelas lentes em que se formou: aquelas nas quais o seu esforço pessoal em um determinado momento pode mudar por completo o resultado final da competição. Pena que é meio redutor tentar estender esse tipo de mentalidade a tudo o mais em uma sociedade, ainda mais em um Brasil no qual os próprios atletas sempre reclamam também da falta de incentivo público.
Bom, seguindo com a protagonista do livro: além desses valores considerados centrais para o ethos do esporte, a narradora também comenta que é parte do conceito do esporte como prática desprezar, em consequência, dois tipos de personagens: o trapaceiro, que burla as regras do jogo buscando uma vantagem injusta e ilegal sobre os demais competidores, e o desistente, que simplesmente se recusa a jogar. Sendo que, a narradora do livro complementa, de modo geral, o esporte como campo parece desprezar com mais intensidade o desistente, visto como um inapelável “perdedor”, do que o trapaceiro, que é considerado desonesto, mas que trapaceia por um impulso que todo atleta reconhece, a “vontade de ganhar”. Já o desistente anula o jogo por se recusar a obedecer às regras mais simples que compõem a sua razão de ser: continuar competindo.
Por ser um livro no qual a maratona pessoal da narradora para concluir a tese reflete e entra em conflito com essa ideologia de dois campos nos quais a desistência é mal vista (o acadêmico e o esportivo), o livro não se ocupa quase nada de um elemento que me parece também importante quando se pensa em qualquer esporte olímpico: aqueles momentos nos quais a política, e em particular a geopolítica, o quadro maior da história e do tempo, levou não a um gesto de desistência, mas a algo parecido, à recusa. Em miúdos: Esforços olímpicos fala muito sobre Jogos, atletas, sobre o esporte como perseverança (talvez seja por isso que escolhi estudar esportes. Pode ser que eu tenha acreditado que o esporte fosse me salvar do cinismo), diz a narradora a certa altura, mas não se aprofunda nos boicotes que de tempos em tempos desfalcaram a nominata de países participantes.
Política e os Jogos
Já faz bem uns quatro anos que li esse livro, e talvez eu o tivesse relegado a alguma gaveta da memória não fosse uma informação que eu havia esquecido completamente e que me foi relembrada pela minha companheira em uma conversa casual: depois da festa dos coliformes fecais no Sena que foi a Olimpíada do ano passado em Paris, os próximos Jogos, os de 2028, serão realizados em Los Angeles. Caramba, eu não me lembrava disso, e o que mais fiz depois que essa informação voltou ao meu cérebro foi lembrar do livro de Chen e lembrar também do que deve acontecer nas imbricações entre política e esporte agora que os EUA escolheram um virtual Darth Vader para estar no comando do país.
Não sou alguém versado profundamente na história olímpica para me lembrar de mais do que três casos de boicote: Moscou em 1980, Los Angeles em 1984 e o mais recente caso das Olimpíadas de Inverno de 2022, em Pequim (e esse eu lembro porque as notícias foram recentes). Assim, andei dando uma pesquisada e encontrei este bom resumo no site Politize!, portal de uma organização da sociedade civil dedicado à educação política pública (leia mais aqui):
“Em 1936, ocorreu o primeiro boicote aos Jogos Olímpicos, em Berlim. Inicialmente, os Estados Unidos e outros países começaram a protestar contra a realização das competições na Alemanha Nazista por conta das violações aos direitos humanos realizadas por Hitler. Após intensas discussões, tais países decidiram participar normalmente das Olimpíadas. Contudo, a Espanha boicotou os Jogos e propôs as Olimpíadas Populares, em Barcelona, mas que foram canceladas dias antes de sua realização pela eclosão da Guerra Civil Espanhola;
Em 1956, ocorreu o segundo boicote às Olimpíadas, em Melbourne. O ato teve três motivações, sendo elas: a Espanha, Holanda e Suíça não participaram em protesto à invasão soviética à Hungria; já o Egito, Iraque e Líbano pela intervenção militar da Grã-Bretanha e da França no canal de Suez; e a China pelo fato de Taiwan ser aceito como país competidor pelo Comitê Olímpico Internacional;
Os Jogos Olímpicos de Verão de 1976, em Montreal, foram boicotados por vinte nações africanas. Estas tentaram, antes das Olimpíadas, excluir a participação da Nova Zelândia e não conseguiram. Assim, impediram que os seus atletas participassem das competições;
O clima tenso da Guerra Fria promoveu o boicote de sessenta e seis países aos Jogos Olímpicos de Verão de 1980, em Moscou. Motivado pela invasão soviética ao Afeganistão, os Estados Unidos lideraram o maior boicote já registrado na história olímpica;
Como represália ao boicote de 1980, a URSS liderou o boicote aos Jogos Olímpicos de Verão de 1984, em Los Angeles (aliás, mesma sede da próxima edição), levando dezessete nações a não participarem das competições”.
Essas são, claro, as vezes em que as Olimpíadas de Verão foram boicotadas, mas houve também manifestações a respeito dos Jogos de Inverno. Como eu comentei antes, os Estados Unidos, em 2022, lideraram um boicote diplomático às Olimpíadas em Pequim, alegando razões humanitárias, como a falta de transparência do regime, a perseguição a dissidentes e o genocídio da minoria muçulmana Uigur. Muito que bem…
Trumpersistência
Los Angeles foi escolhida no mesmo acordo que deliberou Paris como sede em 2024, em julho de 2017. Foi uma decisão tomada com mais de uma década de antecedência, mas já quando o atual presidente Donald Trump estava no cargo. Ainda assim, dada a atmosfera considerada mais “liberal” de Los Angeles, sede da indústria do cinema, poderia haver no gesto mais de um aceno político sutil, embora, considerando o nível geralmente escroto de posicionamento político dessas grandes agremiações atléticas como o COI, acho difícil. O que talvez também se pensasse era que, com um intervalo tão grande, seja lá que confusão que Trump tivesse feito no governo, já poderia estar em processo de retificação quando o período dos jogos realmente chegasse.
E aí chegamos a estes jogos americanos que serão disputados em um país no qual Trump estará em seu terceiro ano de mandato. Pelo que se viu nos seus primeiros cem dias, fico me perguntando quem serão os próximos a boicotar o evento enquanto o palhaço laranja estiver no gabinete. China talvez devolva o boicote, o que é certo. Rússia será outra vez banida, dado que o conflito na Ucrânia segue? Algum país árabe vai concordar em participar enquanto Israel estiver praticando sua política de destruição sistemática dos territórios palestinos? E o que dizer de todos os países com quem Trump arranjou tretas absolutamente ridículas, como o Canadá, que ele insiste que vai anexar, ou como o México, país que ele literalmente emparedou? Ou os muitos parceiros comerciais atingidos, inclusive na Europa, pela mesquinha guerra tributária em escala global?
Quando boicotes como esses acontecem, aparecem sempre vozes ingênuas (algumas mal-intencionadas) lamentando o quanto “a política compromete o espírito agregador do esporte”. O que é uma tremenda bobagem. A própria escolha da sede é política, com implicações políticas de longo prazo no país-sede (a militância petista não gosta que se lembre disso, mas dois dos grandes motivos de desestabilização política no país nos últimos 15 anos foram a insistência do governo Lula em trazer esses Jogos para o Rio em 2016 e a Copa para o Brasil em 2014. A fatura dessa escolha é tão responsável pela queda de Dilma quanto a traição de Temer, mas curiosamente vejo pouca gente falar disso).
Se o exemplo histórico servir de guia, talvez não haja boicote algum, já que, como vimos, em 1936 ninguém topou, no fim, boicotar uma olimpíada realizada pelos nazistas literais. O que esperar então de um momento em que o nazismo no poder é apenas análogo?
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Divulgação