A identificação transcende o que ela mesma significa, em seu conceito de psicologia. A identificação adentra a vida em si, nos seus primórdios. Felizmente, até o final. Às vezes, infelizmente. Precisamos nos identificar e, no fundo, somos a nossa identidade (o que somos), este mix de todas as identificações necessárias, fundantes, fundamentais: ninguém vem do nada ou de ninguém, deserto só faz deserto.
Um eu é o quanto e como o outro foi incorporado a ele (a mim) para o bem, para o mal, para o mais ou menos. Aí é que está, pois pode ser para o mal, e muita gente – senão todos – chega mal identificada na sala do analista, havendo incorporado algo-alguém muito distante da sua essência. Análise é devolução de essências. Parece simples, bastaria tirar essa parte ruim do outro dentro de si; desidentificar, enfim, abrindo um espaço para algo-alguém melhor.
Às vezes, nos melhores casos, a vida faz o trabalho antes da sala, oferecendo uma nova identificação que pode ser um tio, um amigo, um padrinho, um professor. Na ausência deles, resta a chance do embate entre os três: analista, analisando e o intruso. E como é que faz? Precisa conversar muito – “a cura pela conversa” -, narrar, dar tempo ao tempo: a palavra ainda é o grande antídoto contra as identificações alienantes e outros males da constituição do ser. Não tem a rapidez e a eficácia do remédio, mas o remédio, justamente por agir a curto prazo, age no efeito e não nas causas, por isso pode não durar, além de impor efeitos colaterais.
A palavra não tem efeitos colaterais nocivos. Mesmo o sofrimento a que pode levar, agrega e, na rima da própria palavra, integra. Por vezes, ela precisa ir mais a fundo e criar um teatro. O analisando nos põe no lugar dele – transferência – enquanto fica no lugar daquele com quem se identificou para o pior. Não é remédio e o teatro precisa ser repetido muitas vezes, pelo menos até o outro descobrir que é possível sair do imbróglio como estamos provando ali, no lugar dele. Custoso, demorado, pelo menos o tempo de nos tornarmos dispensáveis. Uma análise ainda é a aceitação de que não há soluções mágicas e precisamos conviver com nosso desamparo, incluindo aquele decorrente das péssimas identificações.
Mas os artistas são os mais sábios. Chegaram ao que importa antes de nós – reconheceu o próprio Freud. E, talvez, ficarão depois, quando a nossa técnica, incompatível com a nova cultura, der lugar à outra. Espertos e sintéticos, os artistas transformam o desgosto da identificação ruim em uma peça de arte. E uma peça de arte, mesmo ruim, sempre será boa para isto. Uma música, por exemplo, cantada espanta o mal, como todos sabem, muito antes de Freud. Ou um humor ou uma graça, onde somos nós mesmos, na essência, sem o intruso. Claro que, como tudo o que é humano, terá também os seus limites. Súbito, o efeito passará, devolvendo desespero e desamparo. Mas aí, ao invés de precisar voltar a narrar tudo, como se faz numa análise, basta cantar outra vez. Em qualquer lugar, mesmo em silêncio.
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