O anúncio de que Manuela D’Ávila está “sem partido” causou impacto na esquerda. O anúncio foi feito no debate intitulado “O que a esquerda deve fazer para recuperar o espaço perdido”, realizado pelo Instituto Conhecimento Liberta (ICL), na noite de quarta-feira (16), segundo a imprensa.
Não vi o debate, mas a pergunta me interessa. Minha resposta é a seguinte: a luta da esquerda não é mais uma luta política, é semiótica. É uma luta contra as táticas e estratégias de produção de signos, símbolos e sinais alienantes feitos pela direita. Não se trata mais apenas de luta de classes, mas de luta de sentido. É preciso denunciar os signos usados nas campanhas de direita como produção da alienação capitalista, sua forma de defender interesses de classe e mercado, produzindo a subjetivação da realidade. Vemos isso nas eleições municipais, onde o efeito é que, mesmo as vítimas da ausência de planejamento urbano e políticas de proteção, votam em seu algoz. Uma resposta emancipatória de classe é necessária para reestruturar a luta anticapitalista na cidade.
Digo isto como observador da luta da esquerda na política local, que teme a derrota. Eu não participo das lutas e correntes partidárias ou das tendências, mas acompanho os seus efeitos. Eu vejo sua dificuldade de lidar com a apropriação feita pela direita da produção de sentido na sua propaganda capitalista. Seu repertório de aberrações que divulga, seus méritos para nos manter explorados, não cessa de crescer com iniciativas como a defesa do empreendedorismo ou do empresário de si mesmo, que, sob o artifício de autonomia, nos vendem mais submissão e exploração. A hipótese que desenvolvi em meu livro O Paradigma Estético (Clube dos Autores, 2021) (disponível em jorgebarcellos.pro.br/livros) é que a esquerda dos anos 90, que se recusou a participar do debate modernidade/ pós-modernidade, terminou por prejudicar a criação de uma visão crítica das transformações da cultura de massa que o debate sugeria e que, agora, cobra o seu preço.
A eleição é uma guerra simbólica porque a luta política se faz com base em valores, ideias e signos. Aqui apenas aplico ao caso brasileiro as conclusões de Fernando Domínguez em La guerra simbólica: Hacia una semiótica para la emancipación (Editions Bellaterra, 2012): a esquerda faz sua propaganda visando a cabeça: seus programas, seus objetivos, suas críticas ao adversário, tudo se passa como se apenas a razão imperasse na hora da decisão do voto. A direita faz o contrário, visando o coração popular. Apela à emoção e a assimetria está no modo como se adentram no imaginário, nas ideias que fazem circular e que são parte de uma batalha simbólica que também precisa ser vencida pela esquerda. Em períodos decisivos como as eleições, é preciso mostrar onde a propaganda do oponente é enganadora: é preciso uma crítica contundente dos valores sociais que prega ou cultua. Não podemos mais fazer campanhas sem uma crítica radical ao estado que propõe submetido às “parcerias”.
É preciso criar capacidade de tornar visíveis as coisas que realmente importam para o cidadão, tornadas invisíveis pelo discurso de marketing: a boa prestação de serviços públicos não é a de parceiros, mas a feita por servidores valorizados e competentes, algo ausente do discurso da direita; a imposição de uma visão naturalista dos valores capitalistas quando a substituição da presença do Estado em certas áreas é impossível. E a pior de todas as falácias: a de dizer que o estado precisa funcionar como se fosse espelho do mercado. Quando um plano de governo de direita consegue sair vitorioso, ocultando o fato de que atende ao terrorismo financeiro e bancário, mostra como conquistou a vitória com as armas simbólicas à sua disposição.
É preciso identificar as táticas da guerra simbólica da direita e armar-se para a luta.
A primeira tática simbólica é a negação da identidade ideológica da guerra em que estamos envolvidos. Sempre que ouvimos expressões de nossos opositores de direita que negam a importância da tomada de posição entre esquerda e direita, que afirmam que a divisão apenas atrapalha mais do que ajuda, colocam em seu lugar o artifício de que lutam pelo povo. Então, a propaganda de esquerda tem de mostrar que é exatamente o contrário, revelar que isto é um estratagema que esconde, sob o discurso que se diz para muitos, a verdade que é para alguns, os poderosos, os detentores do capital. Isso coloca a direita em um dilema de imagem, pois mostra aos cidadãos suas contradições, mostra que a esquerda é capaz de denunciar sua estratégia. A propaganda de esquerda deve justamente exibir os vínculos de nossos opositores com o mercado, com lideranças imobiliárias, etc. Não é possível negar a identidade de classe.
A segunda tática simbólica é a que identifica o projeto de felicidade burguesa como a felicidade de todos. Esta estratégia é aquela que atende pelo nome de empreendedorismo. A esquerda precisa denunciar essa ferramenta neoliberal, mostrar que o empreendedorismo é apenas uma palavra educada para dizer “cada um por si”. Não é possível que não esteja claro ainda para a esquerda que a ideia de viver como empreendedor de si mesmo não seja um lugar central de crítica. Afinal, desde quando um motorista de aplicativo é um cidadão feliz? Para isso, basta entrevistá-los, assim como toda a legião que trabalha com tele-entregas, para ver o terror do modelo de felicidade propagandeado pela direita. No centro dessa crítica, está a recusa de uma ideia de felicidade pronta para consumo por iniciativa única do cidadão. Políticas públicas importam.
A terceira é a imposição da mítica do padrão de qualidade dos serviços privados que dizem oferecer que é inexistente no mundo real. São Paulo está passando por um grande apagão e muitas outras cidades sofrem dos males da privatização. É preciso mostrar que tão perigoso quanto privatizar é imitar a lógica privada no serviço público. Somente o usuário do sistema de saúde que é prejudicado pela ausência de consultas médicas e que não dispõe de recursos para a rede privada pode valorizar o serviço público. Não adianta poupar recursos nessas áreas à custa do serviço público. Mostrar o contraste entre realidade e fantasia só pode ser feito a partir do momento em que discursos contraditórios são apresentados no mesmo horário e lado a lado.
A quarta é o esforço para que façamos reverências a seus fetiches mercantis. Não vejo melhor exemplo do que a imagem de transformar a cidade em um imenso agulheiro de edifícios. A cidade transformada num paliteiro, com seus imensos prédios localizados justo ali, no centro da cidade, é um projeto de fetiche arquitetônico esquizofrênico assustador. Ele quer nos dizer que uma cidade é moderna por ter grandes edifícios. Você sabe que, desde o caso de Camboriú, isso não passa de uma grande mentira, basta olhar para seus problemas à beira da praia. É preciso mostrar os custos sociais e ambientais da concentração urbana, a perda de qualidade de vida na cidade com o aglomerado de edificações. É preciso dar um sentido de classe à proposta de expansão imobiliária patrocinada nas cidades pelo capital especulativo e apoiada por prefeitos de direita porque produz mais exclusão social e expulsão dos cidadãos para a periferia da cidade.
A quinta estratégia é o esforço de adoração da tecnologia que faz a direita. Ela quer que adoremos a tecnologia que cria a cidade inteligente, que é a mesma que abre caminho para um controle panóptico dos cidadãos e produz desemprego e serialização com a instalação de mecanismos como totens de segurança que retiram emprego de bons policiais; ela quer que a cultura tecnológica supere a cultura empreendedora, do cada um por si por a do cada um por uma máquina. Seu projeto coloca deuses para as classes populares, mas as exime de tocá-los. Se pudessem, gostariam, como bons capitalistas, que seus valores fossem defendidos mesmo com a vida dos mais pobres.
O uso de fake news é sua sexta estratégia. Ela age por um desvio do ouvinte, do telespectador. São inumeráveis os casos do uso de mentira na vida pública; se mostrar vítima dos desastres naturais quando também colaborou para eles com a ausência de prevenção. As fake news agem por sedução, por desvio da atenção do cidadão: quando criticada, a direita diz que agiu em outro lugar, e com isso quer assegurar seu espaço de participação nos efeitos, quando o que se fazia era criticar sua participação nas causas. Isso também faz parte da guerra suja que ocorre através de uma manipulação feroz das mídias. Isso também é estratégia, manter a confusão: fiz ou não fiz algo? Este é o campo simbólico por excelência, o do artifício.
A sétima é o uso de coalizões para aumentar o monopólio do tempo do horário eleitoral. Ninguém tem nada em comum além do desejo de poder. É preciso denunciar a desigualdade de tempo de expressão de projetos, mas também o fato do sensível apoio dos meios de comunicação à direita. É fato conhecido a influência que o mercado tem nos veículos de comunicação com a propaganda, e é claro, as grandes empresas construtoras são responsáveis pelo investimento em propaganda nos jornais, dando-lhe um viés. Nos debates, desaparecem as opiniões críticas e entram as que endossam o capital.
A oitava é o acúmulo de meios e modos de expressão. O fato de a direita estar em diversos governos as coloca num lugar privilegiado de difusão; o fato de ter a máquina pública também. Nada disso é mostrado com seu caráter alienante e enganador, mas como forma natural de ser e fazer política.
A ela se segue outra estratégia simbólica, a nona, a tentativa de fazer o cidadão se sentir culpado ou cúmplice da crise da cidade. Quando um governante alega que as vítimas de deslizamentos de morros ou quaisquer outras são culpadas por seu infortúnio, produz um deslocamento de sentido: a direita e suas políticas também são responsáveis pela desigualdade habitacional.
A décima é o esforço em apagar o caráter revolucionário das forças das massas. Somos tratados como operários, como trabalhadores incapazes de lutar contra o próprio sistema. A direita faz isso ao nos apresentar uma propaganda feita com os olhos da classe dominante, com signos de classe, nos obrigando a olhar o mundo com seus olhos. Vende-nos sua disponibilidade eterna, sua presença junto à população pobre como signo de uma conquista. Mas eles nunca estiveram lá realmente, continuamente. Essas imagens tiram toda a expressão ligada à luta de classes da cidade. É preciso recuperá-la.
As armas em uso pelas campanhas de direita precisam de uma reação urgente da esquerda. Está claro que o uso do espaço de campanha é vital para a conquista das consciências. Mas não apenas nela, pois a propaganda usa muitas ferramentas desenvolvidas em campos diversos ao longo de todo o período de um mandato. Mas o período de propaganda eleitoral é especial, pois nele impera o marketing. Ele retira de vários signos de sedução: das telenovelas, a quem o público está acostumado, os signos da contação de uma história aos pedaços; dos noticiários, a narrativa neutra que apresenta dados específicos de gestão descontextualizados; da publicidade, na qual se baseia a construção que visa construir o político como governante além das diferenças sociais.
O próprio tom de voz toma emprestado do campo religioso o ritmo de padres durante as missas, com seu caráter encantatório. Não é um discurso onde apenas impera a organização, ao contrário, é a desorganização e a improvisação que aparecem quando reage com os signos irônicos que a esquerda usa em sua luta contra a direita, muitos de apelo popular. A direita conta com uma vantagem, pois até no debate sobre que armas usar, a estrutura dividida da própria esquerda, perdida em seus sectarismos e burocracias, não chega a um consenso.
É preciso apontar quem financia esta guerra simbólica com todos os nomes; tornar claro a presença de interesses do capital nas eleições. É preciso também não incorrer no erro de satanizar o opositor, mas apontar quem está na luta e por que para erradicar a monstruosidade do capitalismo nas cidades. Existe um armamento simbólico e afetivo no ar muito potente, capaz de afetar a subjetividade do eleitor, destruir suas resistências e seu desejo de construir uma cidade melhor. A direita sabe produzir desejo e isso é assustador. Por essa razão, as campanhas de direita não desprezam as armas cinematográficas – o do candidato caminhante é apenas uma delas. É preciso denunciar o desejo de impor valores contraditórios. Não estamos numa festa onde escolhemos a melhor trilha sonora de campanha: estamos numa disputa onde a música é integrante de uma disputa de poder. Quando a esquerda irá demonstrar a cortesia dos candidatos de direita com os capitalistas das cidades, quando se fará uma luta signo a signo com seu opositor? Com um discurso frágil, com signos tão infantis, é possível vencer uma eleição? E isso não é o terrível desta luta, o de que estamos perdendo no campo simbólico, aquele em que a esquerda, desde as noções de ideologia de Marx, tem sido seu melhor leitor?
Não nos enganemos. A direita teve sucesso na ocupação simbólica das consciências. Ela se infiltrou em tudo e em todos e, por onde quer que se vá, todas as pessoas já conversam usando os termos neoliberais. “És empreendedor?” “Quanto lucraste?” “Como vai teu capital?” E por aí afora. É a nova língua dos brasileiros que esconde a luta de classes. Isso também faz parte do campo simbólico. Se vítimas de catástrofes continuam a votar em seus participantes, continuam a defender representantes que defendem a inviolabilidade da propriedade privada, estamos de mal a pior. A esquerda precisa aprender a fazer a luta simbólica porque ela é a base da reversão de narrativas, sem a qual apenas a narrativa do dominador restará no futuro.
Foto da Capa: Marcelo Camargo / Agência Brasil
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