O Tribunal Superior Eleitoral lançou um canal de denúncia para violência de gênero, aquela que acontece contra candidatas mulheres, trans, lésbicas e outras. A medida é importante porque mulheres representam 53% do eleitorado, mas são menos de 15% da composição do Congresso Nacional. Menos de 10 mil mulheres concorreram a cargos em 2018. O ambiente hostil inibe a participação política. Há falta de estímulo para que elas entrem e cresçam na vida política. A violência, temos observado, não é apenas contra candidatas. É também contra eleitoras.
Apesar do canal digital ser específico para denúncias de campanhas ativas, a pedido de partidos políticos, a justiça eleitoral estuda ampliar o canal para relatos de agressões contra a livre manifestação de eleitores. Talvez o tribunal não tenha avançado nesta direção por temor de não dar conta do volume de registros. A violência política extrapolou a cena partidária e acontece em todo lugar entre colegas, estranhos, vizinhos. Mais do que medidas para inibir este comportamento, é preciso estimular a cultura da tolerância, do respeito e embate de ideias. Ter medo de sair com uma bandeira, camiseta ou de não aceitar um santinho na rua não é aceitável para a democracia.
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Escrevo sobre o tema porque entrei em consternação ao ouvir o relato de uma senhora de 80 anos. Nesta última semana, antes das eleições de 2 de outubro, ela foi verbalmente agredida porque não aceitou pegar um santinho eleitoral. Você leu certo. Aconteceu em Porto Alegre, em 2022. A cena foi a seguinte, esta senhora, que ainda possui o hábito de ir até a banca de revistas da esquina, estava observando as publicações quando um vizinho parou ao lado para contar sobre um causo que havia sofrido. Neste meio tempo, chegou o panfletário para entregar santinhos eleitorais. Ela negou dizendo que não era o candidato dela e passou a ser agredida verbalmente pelo jovem, três gerações mais novo. Ele a acusou de esquerdista para baixo, em tom de voz elevado. Acuada, ameaçada e incrédula, foi se afastando da banca de revistas diante do olhar silencioso de todos ao redor, o vizinho, a dona da banca e os transeuntes.
O que teria acontecido se ela tivesse enfrentado no mesmo tom e comprado briga. Não gosto de pensar, mas, por via das dúvidas, a orientei a não sair de casa sozinha até o domingo de eleições. Depois fiquei preocupada com o meu posicionamento. Como assim, não sair de casa? Talvez eu tenha exagerado, mas ando preocupada com as notícias sobre discussões políticas com fins trágicos, com eleitores adversários se matando por candidatos, literalmente. Uma denúncia contra este jovem que distribuía panfletos, com endereço do fato ocorrido, candidato que ele defendia, horário e descrição poderiam gerar, por exemplo, notificação ao partido político ou ao comitê do candidato em questão. Afinal, quem distribui propaganda política, também representa a imagem do político divulgado. Torço para que o TSE amplie o canal de denúncias, pois o potencial de punição ou notificação tem também um viés educativo. Se a pessoa sabe que está sendo observada e o comportamento pode ser punido, há mais chances de inibir o ato violento.
Mas, para além do canal de denúncia, o episódio teve concatenações ilógicas que me fizeram lembrar de um pequeno grande livro que recomendo a todos, ele tem o título sugestivo “Direita e Esquerda”, escrito por Norberto Bobbio e publicado em 1994. Sem medo de errar, eu posso afirmar que Bobbio não situaria esta senhora no esquerdismo, como o panfletário a acusou, mesmo sem conhecê-la. O sufixo ismo, neste caso, remete para os extremos opostos. Os extremistas flertam com o fascismo, absolutismo, comunismo. Mas esta senhora, bem, eu a classificaria como nem-nem. Nem-nem é uma fórmula intermediária entre a esquerda e a direita, cunhada por Bobbio nesta obra. São eleitores que não se identificam com os princípios excludentes dos opostos políticos. “Nada de estranho, entre o preto e o branco pode existir o cinza, entre o dia e a noite, há o crepúsculo. Mas o cinza não elimina a diferença entre o branco e o preto, nem o crepúsculo elimina a distinção entre o dia e a noite”, escreveu Bobbio. A verdade é que ou a pessoa é de esquerda ou é de direita ou está situada na coluna do meio. Não se pode ser esquerda-direitista ou direto-esquerdista. Há o imaginário da Terceira Via, mas este é um assunto para outro artigo. Teoricamente, não há harmonia que possa, na esfera política, tornar esquerda e direita complementares, convergentes para formar uma unidade elevada. Porém, existe o nem-nem. É real e, arrisco dizer, é majoritário.
O cidadão pode se posicionar mais à esquerda ou mais à direita no espectro político, de acordo com o contexto político, econômico e social. Ele não é por princípio nem de direita, nem de esquerda, ele trafega pelo espectro votando ora num político de um lado, ora de outro lado. Este eleitor se localiza no meio. É verdade que, não fossem os princípios opostos, o meio não teria razão de ser. É desta lógica que nasce a centro-direita ou a centro-esquerda. Ou seja, os próprios candidatos se deslocam no espectro. Mas entre o preto, cinza e branco, há uma vasta paleta de cores. E, no sistema democrático, o eleitor pode escolher o lugar que quer se posicionar e, ainda que o voto seja secreto, é livre a manifestação de pensamento, ou seja, negar-se a receber um santinho de um candidato não só não é crime como também não caracteriza esquerdismo ou outras barbaridades bravejadas pelo panfletário do episódio da banca de revistas.
Há quem diga que esquerda e direita se esvaziaram diante da política contemporânea, considerando o centro a solução de problemas, com alianças focadas em proposições e ações conjuntas para a sociedade. O que acontece é que as pessoas, na maioria, não sabem diferenciar, a não ser associando aos candidatos e governantes que se dizem de um lado ou de outro. Fazem cumprir a máxima simplista do “se não é a meu favor, é contra mim”. Mas a vida não é tão preto no branco e entender a complexidade política não é fácil mesmo. O Bobbio constrói uma ideia de que de um lado do espectro, mais à esquerda, estão aqueles que priorizam ideais de igualdade social, ou seja, o combate à desigualdade a partir de ideias progressistas de transformação social. Do outro lado do espectro, mais à direita, estão os conservadores, ou seja, aqueles que defendem o status quo, a manutenção do poder onde está. As ideias de liberdade perpassam todo o espectro, mais à esquerda ficam a liberdade regulada pelo Estado e à direita o liberalismo com o Estado mínimo.
O livro é de 1994, mas não envelheceu. A partir dele, consegui enxergar que posições mais à esquerda ou mais à direita são reacomodadas na passagem do tempo, desde a Revolução Francesa, berço da dicotomia conservadores e progressistas, direita e esquerda. Quem se coloca na extrema direita vai achar de esquerda as ideias de centro-direita, e o oposto também funciona. Dependendo da situação, extremistas e centro podem se unir e mais adiante dispersar. E assim evolui a dinâmica do sistema democrático. O que não é democrático é achar feio o que não é espelho e ao ver refletida a imagem do outro quebrar o vidro. Portanto, a violência física ou verbal na política não é tolerável.
Enquanto o TSE não implementa um canal de denúncias para inibir a intimidação e a violência contra os eleitores, meu apelo é para que você não fique apenas olhando como fizeram as testemunhas da agressão verbal na banca de revista. Levante, exerça o voto e apazigue violências caso a presencie. Ser de esquerda ou de direita, diferentes ou iguais, progressistas ou conservadores, não justifica violências contra candidatos e candidatas, menos ainda contra o eleitor.