A cidade de Brasília, tombada pela Unesco, cantada em prosa e verso pelo seu urbanismo, sofre uma crítica contumaz: não tem esquinas! Bela com seus palácios, espelhos d’água, lagos, parques e jardins, edifícios bem ventilados e insolados, espaço para crianças brincarem nas superquadras e outras tantas maravilhas… mas não tem esquinas, repete o invejoso cidadão das demais cidades brasileiras. Ele mora em lugares mal planejados, sem a maioria das qualidades listadas da capital, mas afirma desdenhoso: nós temos esquinas! A questão é: até quando?
Um amigo me fez um pedido: escreve sobre as esquinas de Porto Alegre antes que desapareçam! E não é que ele tem razão? É só observar o que está acontecendo com Porto Alegre e, me arrisco a dizer, Brasil afora. Todo dia uma edificação de esquina vem abaixo para dar lugar a uma farmácia ou conjunto de lojas sem graça. Um caixote pré-moldado, sem arquitetura, distanciado o máximo possível da própria esquina para dar lugar a vagas de estacionamento. E todas iguais!
As esquinas, por omissão legal, estão deixando de ser lugares de convivência, de encontro. Está ficando impossível usar referências de endereço a partir de uma esquina, elas são sempre as mesmas. A diferença se dá apenas na logomarca das três ou quatro redes que dominam o mercado.
Os brasilienses devem estar rindo à toa da nossa soberba: não era bom ter padaria de esquina? Um restaurante, café ou mercadinho? Residência diferenciada? Edifício com marquise e loja na calçada? Onde foram parar? Pois é, as calçadas estão sumindo, agora viraram parques de estacionamento.
E não são só as esquinas. As calçadas das avenidas estão desaparecendo também. Comecei a observar há um bom tempo em São Paulo o fenômeno do rebaixamento do meio fio para que os automóveis ocupassem as frentes das lojas. Algumas farmácias de lá chegam a reservar a parte interna frontal da loja para o estacionamento do carro. Literalmente os carros invadem a loja. É estranho de se ver. Patético, até.
O fenômeno se espalhou rapidamente para o Brasil e chegou aqui. Hoje, caminhar em muitas ruas e avenidas onde justamente se quer, e se precisa caminhar virou corrida de obstáculos. A expressão passeio público para nominar as calçadas virou ironia. Hoje é melhor chamar de acostamento, como nas estradas. Carros manobram o tempo todo em cima das calçadas e ao pedestre resta achar o caminho. Cadeirantes agradecem quando a passagem é maior que um metro.
Todo mundo acha isso normal? É só meu amigo e agora eu que nos incomodamos? Ninguém dá bola para isso?
Curioso é que um sentimento oposto surgiu nos últimos tempos, pelo menos no discurso: o da reconquista do espaço público. Políticos locais propalam conceitos que estão sendo realizados em outros países, mundo afora, há um bom tempo: a cidade acessível ao pedestre e à bicicleta. É preciso retirar de cena os automóveis, valorizar a caminhada. Não é por falta de exemplos práticos que a mudança não sai do discurso. Não é difícil buscar inspiração. Se todo mundo tem uma farmácia perto de casa, por que precisamos do carro para acessá-las?
Também se vê por aqui, em parte da população, uma vontade muito grande de mudanças. Esquinas, aqui e ali, relutam em se entregar e voltam a ser as esquinas que foram no passado. Até a prefeitura ajudou ao permitir os parklets. O que me leva a pensar que somos mesmo uma cidade esquizofrênica.
Por muito tempo falávamos contra a prioridade aos automóveis, mas obrigávamos todo novo projeto – de moradia, comercial, cultural etc. – a incluir vagas de estacionamento para tudo. Passou a ser impossível, por exemplo, fazer um cinema de calçada que não tivesse também um estacionamento. O público que ocupava as calçadas ao final de cada sessão se transformou em cortejo de objetos metálicos. Claro, os cinemas foram todos sendo empurrados para os shoppings… Aliás, como todo o resto do comércio.
A mesma esquizofrenia acontece agora com o destino das calçadas. Duas ações simultâneas: valorização discursiva e desapreço na prática pelo poder público e maior parte da iniciativa privada. Vá entender Porto alegre e o Brasil.