Qual é a esquina mais linda que você conhece? Qual é a esquina mais bela de sua cidade? Certamente você listaria várias esquinas para responder estas perguntas. Desconsidere os edifícios isolados em um quarteirão. Em geral são excepcionais. Imagine aqueles que compõem a malha viária urbana (ou o traçado urbano), isto é, que se encontrem num cruzamento ou em uma bifurcação de ruas.
No preâmbulo da Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas, conhecida como “Carta de Washington” (1986), redigida com o apoio do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – ICOMOS -, organização não governamental criada em Cracóvia, na Polônia, em 1965, para congregar pessoas e instituições que trabalham pela conservação dos monumentos, conjuntos e sítios históricos, consta que “as cidades são resultantes de um desenvolvimento mais ou menos espontâneo ou de um projeto deliberado, expressando materialmente a diversidade das sociedades através da história”.
Talvez o leitor não saiba, mas, desde a antiguidade, surgiram cidades planejadas. Na Grécia Antiga, na Ásia Menor, foram concebidas Mileto e Priene. Aliás, Hipódamo de Mileto (ca. 498 a.C. – 408 a.C.), é considerado o precursor, motivo pelo qual o traçado em quadrículas, isto é, ortogonal de cidades é chamado de hipodâmico.
Desde então, se detendo apenas no ocidente, grande parcela das cidades, previamente concebidas ou não, são geralmente compostas de uma malha viária que delimita os quarteirões subdivididos em lotes, definindo o parcelamento do solo. Nos cantos dos quarteirões, formam-se as esquinas, pontos estratégicos para a exploração comercial.
Focando especificamente no contexto latino-americano, os assentamentos humanos foram planejados antes mesmo da chegada dos europeus a partir do final do século XV. Teotihuacan, no México, é o exemplo mais conhecido. Organizada nos sentidos norte-sul e leste-oeste, a adoção de ângulos retos é visível na sua organização espacial, pela observação da incidência do sol sobre a superfície terrestre.
Enrique Bonilla di Tolla vale-se da tese de Edmundo O’Gorman (1906-1995), intitulada “La invención de América” (1958), de que a América não foi descoberta, mas inventada, para justificar a origem dos núcleos urbanos sob a dominação espanhola: “se pode postular que a cidade americana é também um invento, que serviu em princípio com propósitos militares, de ocupação do território. Seu traçado respondeu a um modelo pragmático, derivado dos acampamentos militares e foi sendo enriquecido a medida em que foram se instalando as ordens religiosas e alguns serviços. Por tanto, a cidade renascentista, alentada pelas intenções europeias de ordem e geometria, é um produto absolutamente americano e a primeira contribuição de nosso continente à história da urbanística ocidental” (DI TOLLA, 2009, p. 24).
Neste período, do descobrimento ao fim do primeiro quartel do século XIX, quando ocorrem as independências da quase totalidade dos países latino-americanos, destacou-se a produção da arquitetura religiosa, primeiramente marcada pela presença das ordens religiosas no México, responsáveis pela cristianização dos indígenas, construindo os chamados conventos-fortalezas, em áreas estratégicas do território mexicano, inclusive originando povoações ao seu redor. Todos do século XVI. Num segundo momento, deu-se as construções das principais catedrais do continente, destacando-se as da Cidade do México e Puebla, no Vice-Reino da Nova Espanha, e as de Lima e Cusco, no Vice-Reino do Peru. Paulatinamente, nestes três séculos de dominação ibérica, surgiram novos conventos urbanos pela presença de diversas ordens religiosas. Neste contexto, nos quarteirões que abrigaram estes complexos religiosos, as esquinas das áreas centrais das cidades hispano-americanas receberam atenção especial. Foram enriquecidas por recuos que propiciaram átrios na frente das igrejas conventuais voltados ao acesso dos fiéis às mesmas, aos eventos religiosos programados por estas instituições, ao encontro das pessoas e ofereceram o distanciamento necessário para se apreciar o rico acervo formado, em grande parte de linguagem barroca. Lima é famosa pelos seus conventos. Merece destaque dentre os diversos exemplares limenhos, o átrio onde encontram-se as Igrejas de San Francisco de Asis (XVI ao XVIII), do português Constantino de Vasconcelos, de Nuestra Señora de la Soledad (1670), conhecida por Capela do Milagre, de Pedro Fernández de Valdés, e do Convento franciscano del Nombre de Jesús (século XVI-XVIII), com notável pórtico do mesmo Constantino de Vasconcelos, conjunto situado no Jirón Lampa cuadra 1, esquina Jirón Ancash cuadra 3, no centro da capital peruana. Aliás, em Lima, várias outras igrejas católicas, com átrios, ocupam esquinas do centro histórico, situação que se repete em outras cidades que fizeram parte deste vice-reino.
Em Quito, outra cidade importante da região, capital do Equador, salientam-se a Igreja conventual (1605-1765), o Convento de San Ignacio de Loyola, e o Colégio Máximo do Noviciado, conjunto edificado pela Companhia de Jesus, conhecido apenas por La Compañía, implantado num quarteirão no centro histórico da cidade, em 1586. Na esquina formada pelas ruas (calles) García Moreno e Sucre, destaca-se, exatamente na esquina, a igreja iniciada entre 1605 e 1613, pelo italiano Nicolás Durán Mastrilli (1570-1653), auxiliado pelo basco Martín de Azpitarte, ambos sob a direção do jesuíta espanhol Gil de Madrigal. Em 1636, assumiu a obra o irmão napolitano Marcos Guerra (1600-1669), que deu ao edifício feições renascentistas. Na oportunidade, introduziu as cúpulas e abóbadas de berço, além das capelas laterais dotadas de pequenas cúpulas. Outros jesuítas colaboraram com a construção, destacando-se o padre alemão Leonardo Deubler que iniciou a construção da fachada de pedra vulcânica cinza, entre 1722 e 1725. As obras foram retomadas pelo irmão italiano Venancio Gandolfi, a partir de 1760, sendo a magnifica fachada barroca, concluída em 1765. A mão de obra utilizada foi indígena e mestiça do próprio local.
Até 1776, o Vice-Reino do Peru englobava a região platina, assim, a tradição de ocupar esquinas estratégicas das povoações por igrejas se estendeu até o sul do continente. No território argentino também foi comum este tipo de solução. Em Córdoba, está a obra mais importante, pelo pioneirismo, a Igreja da Companhia de Jesus.
Em Buenos Aires, na região central, são inúmeros os casos em que na esquina o átrio antecede a igreja. O exemplar mais conhecido é a Igreja de São Francisco.
No território brasileiro a valorização das esquinas no período de dominação portuguesa ocorreu em menor profusão que na área de colonização espanhola. Mesmo assim, merecem citação exemplos como a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (1802-1915), na Rua Deodoro, número 135, centro de Florianópolis, no atual Estado de Santa Catarina, e a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte (1779), à Rua Luiz do Couto, número 1, na cidade de Goiás (antiga Goiás Velho), no Estado de Goiás.
Principalmente a partir da segunda metade do século XIX, na chamada “Cidade Pós-liberal”, as esquinas das cidades latino-americanas foram de fato valorizadas com maior ênfase. Paris passou a ser o referencial de cidade moderna após as intervenções promovidas pelo imperador Napoleão III – Charles-Louis Napoleón Bonaparte (1808-1873), e realizadas pelo prefeito do antigo departamento do Sena, barão Georges-Eugène Haussmann (1809-1891), entre 1853 e 1882. A ela somou-se Barcelona, na Catalunha, com as consequências inovadoras da extensão (Eixample), de 1860, concebida pelo engenheiro Ildefons Cerdá i Sunyer (1815-1876).
Comércio e serviços passaram a ocupá-las. Lojas, botecos, cafés, hotéis e bancos deram prioridade a estes pontos centrais das cidades latino-americanas. Por vezes até prédios públicos. Assim, magazines como o “Palacio de Hierro”, inaugurado em 1891, incendiado em 1918 e reconstruído (1918-1921), por Paul Dubois, no centro da Cidade do México, procuravam associar a paisagem local a Paris, onde despontavam o Le Bon Marché (1869-1887), do arquiteto Alexandre Leplanche, e a loja de departamentos Grands Magasins du Printemps (fundada em 1865), cujo prédio primitivo, incendiado em 1881, deu lugar a outro mais moderno, projetado pelo Paul Sédille (1836-1900).
Cafés, como o Colombo, na esquina da Rua dos Andradas, com a Rua General Câmara, no centro de Porto Alegre, de autoria do alemão Theo Wiederspahn (1878-1952), ou botecos como o “Fedor” (Stink, em ídiche), no tradicional bairro Bom Fim de Porto Alegre, imortalizado pelo humorista José Evaristo Vilalobos Júnior, o Carlos Nobre (1929-1985), proliferavam pelo mundo. O Lutetia Hotel (1904-1906), depois Hotel Chile, do arquiteto francês Louis Dubois, na Avenida de Mayo, número 1297, com a Calle Santiago del Estero, que dividia a esquina com o Hotel Majestic (1905-1909), no número 1317, onde se casou o coreógrafo russo de origem polonesa Vaslav Nijinsky (1889-1950) e se hospedou Le Corbusier (1887-1965), em 1929, demonstram, assim como o Grande Hotel de Pelotas (1924-1928), fruto de concurso público vencido por Theóphilo Borges de Barros (1882-?), na Praça Coronel Pedro Osório, número 51, esquina Rua Padre Anchieta, na cidade de Pelotas, o ponto estratégico que a esquina sempre se constituiu para este tipo de atividade.
Se detendo apenas ao contexto do Rio Grande do Sul, agências bancárias também priorizavam esquinas. Notório foi o edifício do Banco da Província (1913), na Rua Sete de Setembro, esquina Uruguai, de autoria de Theo Wiederspahn, hoje substituído por edificação de meados do século XX, mandada construir pela mesma instituição. No interior do estado, inúmeras agências poderiam ser lembradas. De imediato, vem à mente a agência do Banco Pelotense, em Santa Cruz do Sul, de autoria do mesmo Wiederspahn, que também foi autor da agência do Banco Nacional do Comércio (1917-1918), em Santa Maria, atual agência da Caixa Econômica Federal, na Rua do Acampamento esquina com o Calçadão Salvador Isaia (antiga Rua do Comércio). Do arquiteto Manoel Barbosa Assunção Itaqui (1876-1945), formado na Escola de Engenharia de Porto Alegre, em 1900, se destaca a antiga sede do Banco Pelotense (1920-1922), à Rua Sete de Setembro, número 1560, em Cachoeira do Sul.
No centro histórico de Pelotas está o mais íntegro conjunto de edificações bancárias em esquinas, no Estado. Na Rua Marechal Floriano Peixoto, número 51, esquina Rua General Osório, está o edifício-sede da agência matriz do Banco Pelotense (1913-1916), seu projeto foi feito pela empresa Perez Monteiro & Cia. Ltda, de Montevidéu (MOURA & SCHLEE, 1998, p. 110). Na Praça Coronel Pedro Osório, número 164, esquina rua XV de Novembro, encontra-se a agência do antigo Banco da Província, hoje Itaú (1926), projeto encomendado para a construtora Azevedo Moura & Gertum, de Porto Alegre. Na mesma Praça Coronel Osório, número 67, esquina Rua Lobo da Costa, está o edifício da antiga agência do Banco do Brasil, prédio hoje pertencente à municipalidade, projetada pelo engenheiro Paulo Gertum.
Daria para se elencar também uma série de outras atividades. Na mesma Pelotas, o Teatro Guarany (1920-1923), de Stanislau Szarfarki, valoriza a esquina da Rua Lobo da Costa, número 849, com a Rua Gonçalves Chaves. Os estudiosos da arquitetura não deixariam de fora de uma lista a chamada “Casa Bailante” (1994-1996), em tcheco, Tančící dům, originalmente Fred & Ginger, por ter a forma de dançarinos, lembrando Fred Astaire e Ginger Rogers, notável edifício de escritórios concebido por Frank Gehry (1929) e Vlado Milunić (1941-2002), em Praga, na República Tcheca e o edifício residencial (1984), conhecido por BonJour Tristesse, Schlesische Straße 8, bairro de Kreuzberg, em Berlim, na Alemanha, do arquiteto português Álvaro Siza (1933), autor da sede da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, com o alemão Peter Brinkert.
Toda esta explanação foi feita para demonstrar o quanto as esquinas são importantes e merecem tratamento diferenciado. Porto Alegre também teve e tem esquinas especiais. Basta aqui citar a “esquina democrática” (Rua dos Andradas com Avenida Borges de Medeiros), ponto referencial do centro histórico onde encontra-se o Edifício Sulacap (1938-1948), do arquiteto Arnaldo Gladosch. No entanto, é duas quadras dali, na esquina da Rua dos Andradas com a Rua General Câmara que está talvez a esquina mais interessante. Nela, outrora estiveram o Hotel Viena (1904), projetado por Herrmann Otto Menchen (1876-?) e o já citado Café Colombo. Até hoje está o edifício Arte Nova que abrigou a Livraria Americana (1906), de autoria do italiano Francesco Tomatis, e lá encontra-se a solução de esquina que mais chama a atenção do articulista, o Edifício Chaves Barcelos (1948), do arquiteto vienense Carl Lothar Jaschke (1911-1990), também conhecido como “edifício do relógio”, um dos símbolos da verticalização da cidade.
Na contramão, anda Porto Alegre e outras cidades brasileiras. A maior comprovação de que a sociedade adoeceu, está na alta densidade de farmácias existentes em suas esquinas. Por vezes parece inconcebível a presença de mais de uma num único cruzamento de ruas. Pelas construções de forma cúbica, em pré-moldados, solução da maioria delas, imagina-se que serão efêmeras. Talvez sirvam a interesses especulativos. Perdem as cidades.
Para concluir, faltou o articulista revelar sua esquina mais bela. O título vai para o número 92 do Passeig de Gràcia, esquina Carrer de Provença, em Barcelona, onde está a fantástica Casa Milà, conhecida como La Pedrera (1905-1907), projetada pelo catalão Antoni Gaudí, para Roger Segimon de Milà (foto da capa). Não é apenas o reconhecimento ao fabuloso arquiteto catalão que a idealizou, mas também ao Eixample de Barcelona de Cerdà, que proporcionou a que a capital da Catalunha tenha o mais belo conjunto de esquinas do mundo. Porto Alegre precisará de olhar para estes exemplos aqui citados quando for reconstruída.
Bibliografia
DI TOLLA, Enrique Bonilla. La fundación de Lima. In: DI TOLLA, Enrique Bonilla (director). Lima y El Callao: Guía de Arquitectura y Paisaje. Lima: Universidad Ricardo Palma; Sevilla: Junta de Andaluzia – Consejería de Vivienda y Ordenación del Território, Junio de 2009.
MOURA, Rosa Maria Garcia Rolim de & SCHLEE, Andrey Rosenthal. 100 imagens da Arquitetura Pelotense. Pelotas: Pallotti, 1998.