“Em tempos normais, podemos considerar qualquer voto como ético. Participar de uma eleição é um ato digno por si só, de um cidadão com voz que expressa junto aos outros os interesses e valores que orientam o futuro de nossa terra. Mas estes não são tempos normais.”
E essa não é uma eleição normal. Foi isso o que Timothy Snyder escreveu antes das eleições americanas que decidiam entre Donald Trump e Joe Biden em 2020. Ao questionar as implicações éticas de um voto em Trump, o historiador, que se tornou conhecido por suas obras que estudam os regimes ditatoriais europeus das décadas de 30 e 40 do século passado, alertava abertamente que aquele era um voto contra a democracia.
Por que não seriam esses tempos “normais”? Porque o medo de Trump de ser julgado e preso o levava a se aferrar com unhas e dentes ao poder. Como diz o autor: ele pode interferir na polícia e nas investigações enquanto for presidente, mas não pode fazer nada depois disso. Para o tirano (ou aspirante a tirano), manter-se no poder é uma questão de vida ou morte, para proteger sua família da cadeia e manter seu patrimônio intocado.
Outra característica de anormalidade que ele via nas eleições eram os estratagemas buscando manter o poder mesmo em caso de derrota. E como isso se mostrou? Trump buscou apoio dos militares, sinalizando que precisava de uma ajudinha dos outros para se manter no cargo. As Forças Armadas dos EUA, como acontece na normalidade democrática, se recusaram a embarcar na aventura ou interferir nas eleições.
O passo seguinte foi tentar deslegitimar as eleições todos os dias. Atacar o sistema eleitoral sem tréguas por meses, colocar em dúvida o sistema de votação, insinuar que não iria aceitar o resultado das urnas. Tudo, uma antecipação de uma possível derrota e que os resultados das urnas seriam ignorados. O objetivo: manter-se no poder mesmo perdendo as eleições. Para isso, a principal estratégia do governo foi tentar deslegitimar as eleições.
Qual o plano? Como diz Snyder, o importante não era ganhar as eleições, mas manter-se no poder a qualquer preço. Nem que para isso fosse preciso contestar a Justiça Eleitoral, transformar o governo em verdadeiro guarda-costas do gangsterismo político e estimular seus partidários mais radicais a promover o caos. Uma combinação que tinha como objetivo intimidar a Suprema Corte.
O artigo prossegue dizendo que, em uma eleição assim, o número real de votos importava menos que a radicalização dos seus eleitores mais fiéis e do quanto eles estariam dispostos a apoiar os ataques de Trump contra a democracia e tentar um golpe de estado (e isso aconteceu após a publicação do artigo em questão, com a tresloucada invasão do Capitólio e a tentativa de impedir que Biden fosse declarado Presidente dos EUA).
“Por estar tratando o dia da eleição como uma ocasião para um golpe, Trump tem boas razões para não suavizar sua mensagem para alcançar mais eleitores. Ao fazê-lo, arrisca-se a perder parte da emoção de que necessita quando tenta permanecer no poder por meios não democráticos.”
Assim, o discurso de Trump não era para ganhar eleitores, mas feito sob medida para demonizar os seus adversários, chamando-os de comunistas, taxando-os de criminosos que queriam acabar com os valores tradicionais americanos. E, claro, atacar sem tréguas o processo eleitoral e a Suprema Corte (o STF deles). Afinal, ganhar as eleições era secundário….
Anunciar um golpe de estado assim não é muito comum, mas vem sendo um expediente bastante usado pelos novos governos de extrema-direita do século XXI, da chamada “democracia iliberal” ou “nacionalismo cristão”.
Ao dizer isso de forma clara, o autor adverte que os eleitores foram transformados em parceiros de uma aventura golpista. Estava mais do que evidente que quem estivesse do lado era cúmplice do desmoronamento da democracia. É claro que nem todos os eleitores vão aceitar que estão fazendo esse papel e vão apelar para toda sorte de desculpas.
“Esta é uma lição da tirania moderna: o autoritarismo não precisa ser um projeto consciente daqueles que o abraçam. Eles só precisam cumprir os papéis que lhes são atribuídos. Quando a democracia estiver reduzida a pó, eles encontrarão argumentos para o que fizeram e apoiarão o regime autoritário que se segue, porque já estão envolvidos. Nenhum argumento de emoções ou mostrando os interesses em jogo pode parar esse processo. A degradação é ética, então a questão é ética.”
Então, pergunta o expert em ditaduras, “qual é o significado moral de um voto em Donald Trump?”
Votar em Trump era ajudar a pavimentar o caminho do autoritarismo, legitimando um processo golpista em curso, e tornando-se parte ativa de um complô para acabar com a democracia americana. Era votar por um futuro em que o voto não tivesse mais valor, pois a continuação do governo Trump seria eleições sem sentido, como são na Hungria ou na Polônia de hoje. Sequer poderemos falar em fraude pois as eleições serão uma piada.
Nesse sentido, o eleitor de Trump teria a alegria fugaz de uma vitória eleitoral que o distrairia de uma profunda derrota moral. Seria voto por um futuro de submissão a um tiranete, uma eleição para acabar com todas as eleições.
Como finaliza o autor, Biden não era o candidato perfeito, mas era o candidato da democracia e da dignidade que somente ela traz para os cidadãos de um país. “Se nossa democracia morrer, um eleitor de Biden poderá dizer a si mesmo que fez a coisa certa, fez o que era possível, não cedeu.” Mais do que isso, quem votou em Biden, mesmo que perdesse, poderia falar com orgulho de seu compromisso com a democracia e que teve a fibra moral de resistir ao ataque autoritário. Nesse quadro, o único voto ético era em Joe Biden.
Lendo isso, fico aliviado de não morar nos EUA. Deve ser horrível viver em um país que passe pelo pesadelo de um candidato atacando o sistema eleitoral dia e noite, apontando o STF como um inimigo, colocando em dúvida a lisura das eleições e buscando transformar as Forças Armadas e Polícia em cúmplices de seu projeto de poder pessoal. Imagine que terror seria ver o candidato a tirano e seus aliados falando em uma batalha do bem contra o mal, utilizando-se de igrejas como palanque eleitoral, atacando o Papa e chamando seus adversários de corruptos e comunistas.
Deve ser terrível passar por eleições assim. Sorte que sabemos como isso acaba: em tentativa de golpe e violência. E é precioso que Thimothy Snyder mostre que há uma escolha moral possível: se recusar a servir de cúmplice do autoritarismo. Por mais imperfeito que possa ser o candidato que defende a democracia, essa é a única alternativa ética.
Foto da Capa: Grada por IA / Freepik
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