Uma certa imagem sobre a criança e suas infinitas indagações — algo muito ao sabor dos inquéritos ontológicos da filosofia — aparece na homônima coleção caleidoscópica de versos livres de Walt Whitman, chamada Folhas de Relva, de 1885. Ali uma criança, trazendo um tufo de grama nas mãos, interpela o ‘narrador’ sobre o significado daquilo mesmo que ela carrega, levando-o da perplexidade filosófica ao naturalismo de uma descrição que pretende apreender, talvez, certas causas:
“Uma criança disse, O que é a relva? trazendo um tufo em suas mãos;
O que dizer a ela? …. sei tanto quanto ela o que é a relva.
Esta é a relva que grassa onde quer que haja terra e água
Este é o ar comum que banha o globo.”
(Walt Whitman, Folhas de Relva, 2005 [1855], p. 67)
Do início ao fim do poema-coleção de Whitman, uma charada se delineia e se sustenta, sendo urdida mediante imagens, ressonâncias, atmosferas, sonoridades e descrições. Explicação naturalista e tontear místico se misturam e se retroalimentam nesse épico livremente proseado, onde imanente e transcendental, em desimpedido jogo poético, tentam apreender artisticamente a concretude das lembranças do poeta do século XIX, bem como narrar a experiência de uma nova nação estadunidense. Ralph Waldo Emerson — que, aliás, muito entusiasmado com a primeira edição de Folhas de Relva, enviara uma longa e elogiosa carta ao seu autor — comentara algo bastante similar ao trecho de Whitman, sobre a admiração das crianças, em seu Natureza, de 1836:
“[…] poucos adultos conseguem ver a natureza. […] O amante da natureza é aquele cujos sentidos internos e externos ainda se encontram verdadeiramente ajustados um ao outro; aquele que reteve algo do espírito da infância mesmo na sua vida adulta. Suas trocas com o céu e a terra se tornam uma parte de sua alimentação diária. E diante da presença da natureza um prazer indomesticado o atravessa, à despeito de seus reais infortúnios. […] Na mata também os humanos se despem dos seus anos, como a cobra descama sua pele, e em qualquer momento de sua vida, serão sempre crianças” (Ralph Waldo Emerson, Nature, 2009 [1836], cap. I, s/p, tradução minha).
É uma afinação ou um certo ajuste estético o que nos capacitaria a ver a natureza. E isso, para Emerson, terá relações com a nossa respectiva capacidade de reter, na vida adulta, algo da infância: despojamento, abertura ao mundo, despreocupação, encantamento, admiração talvez? Esse interesse por uma capacidade peculiar de nos maravilharmos diante das coisas foi tema de tratamento filosófico, ensaístico e artístico em nossa tradição — do thaumaston de Aristóteles, ao favor de Kant; do pato-coelho de Wittgenstein, ao enativismo sensório-motor de Noë; da estranheza de Baudelaire, atenta às nuvens, ao infraordinário de Perec; da flanêrie de Balzac e Fournel, ao perambular pelas passagens de Benjamin; do inquietante ou infamiliar de Freud, ao aha!-Erlebnis de Lacan. Tratamentos da estética, ou das investigações sobre a sensibilidade e os modos de experiência, que procuraram capturar certas determinações da nossa capacidade cognitiva de, ativamente, notar algo diferente mesmo no curso da familiaridade das experiências cotidianas.
A famosa aquarela de Dürer, intitulada O grande pedaço de relva, de 1503, convida-nos a ver um conjunto desigual de plantinhas — gramíneas, ervas-de-febra, dentes de leão, rapazinhos, quartilhos, verónicas, tanchá e mil-folhas —, representadas em todo seu naturalismo pictórico, crescendo baldias, livres, com suas várias raízes bem agarradas na turfa, em meio aos acidentes do solo. Dürer nos convida a ver essas plantas da relva como são, de fato, as plantas: selváticas, arredias, livres. Se, por um lado, é certo que se as ornamenta, ajardina e domestica, então, por outro lado, é igualmente certo que elas vicejam e se emaranham à revelia do nosso cuidado ou controle. É da natureza mesma da planta, já disse Coccia, em A vida das plantas, de 2018, serem rebeldes, insistentes, perseverantes. De modo que a diligência silenciosa com a qual os vegetais cumprem sua diuturna tarefa existencial passa ao largo da atenção humana, ao ponto de muitas vezes imputarmos às plantas a característica de serem tediosas. Embora delas dependam todas as cadeias vivas do reino Animalia.
Nossa desatenção aos representantes do reino Plantae é tamanha que Wandersee & Schussler, dois biólogos, estipularam inclusive o conceito de cegueira vegetal. Uma inabilidade humana em ver e em notar as plantas nos ambientes em que vivemos, rebaixando-as como inferiores aos animais e, portanto, não dedicando-lhes tanta atenção ou consideração quanto eles (Wandersee & Schussler, Preventing Plant Blindness, 1999, p. 85). Embora o conceito seja ilustrativo para apreender algo de uma relação possível com as plantas, ele não poderá ser aplicado de modo generalizante ou essencialista. E isso porque nem todo indivíduo estabelece com elas uma relação de ignorância, esquecimento ou desapreço.
Lévi-Strauss em O pensamento selvagem, de 1989, procurou mostrar o quanto as dicotomias selvagem/civilizado, primitivo/evoluído e mito/ciência são factualmente espúrias para as comparações entre culturas e para a descrição etnográfica. Seu livro — cujo título, aliás, alude ao nome da planta cuja flor chamamos de amor perfeito; em inglês, pansy; em francês, pensée des champs ou pensée sauvage — inicia com um recenseamento de peso de outros antropólogos que se interessaram pelos modos de relacionamento dos indivíduos com as plantas. Não para celebrar seus nomes ou trajetórias; mas, sobretudo, para indicar como eles se dedicaram ao estudo, entre os povos originários, dos modos fascinantes de relacionamento humano com as próprias plantas.
Assim, por exemplo, entre os curandeiros mananâmbal, as práticas de cura estão intimamente vinculadas aos mecanismos aprimorados de identificação e uso vegetal (R. B. Fox, 1953, apud Lévi-Strauss, 1989, p. 19). Nas ilhas Ryú kyú, até mesmo crianças muito pequenas são capazes de identificar tipos específicos de árvores a partir de um diminuto fragmento da planta (Smith, 1960, apud Lévi-Strauss, 1989, p. 19). Já entre os índios tewa do Novo México, as distinções entre espécies de coníferas são facilmente arroladas entre eles, enquanto que para os brancos tais distinções dificilmente seriam feitas mediante observação (Robbins, Harrington & Freire-Marreco, 1916, apud Lévi-Strauss, 1989, p. 20). Os subanum das Filipinas, por outro lado, possuem um imenso léxico botânico que, tranquilamente, ultrapassa mais de mil termos diferentes e provê intrincadas combinações semânticas com outros substantivos da sua língua na descrição da realidade (Frake, 1960, apud Lévi-Strauss, 1989, p. 20). E, por fim, talvez o relato mais interessante mencionado por Lévi-Strauss, seja o de Gilges, reproduzido na íntegra:
“Sempre fiquei surpreso com a solicitude com a qual o povo de Balovale e das regiões vizinhas aceitava falar de seus remédios e poções. Estariam lisonjeados pelo interesse que eu demonstrava por seus métodos? Considerariam nossas conversas como uma troca de informações entre colegas? Ou quereriam exibir seu conhecimento? Qualquer que fosse a razão de sua atitude, jamais se faziam de rogados. Recordo-me de um danado de um velho luchazi que trazia braçadas de folhas secas, raízes e hastes, a fim de me ensinar todos os seus usos. Seria ele herborista ou feiticeiro? Eu nunca pude decifrar esse mistério, mas posso constatar, com tristeza, que jamais possuirei sua ciência e sua habilidade para curar: associados, meus conhecimentos médicos e seus talentos teriam formado uma combinação muito útil” (Gilges, 1955, apud Lévi-Strauss, 1989, p. 21).
Quem, portanto, rebaixa as plantas como seres inferiores? Quem, de fato, sofre da famigerada cegueira vegetal? Ora, somos nós, que vivemos no contexto das imensas cidades, apinhados entre torres de vidro espelhado e concreto, com nossa paisagem resumida ao asfalto das avenidas e ao trânsito barulhento dos carros. A cegueira vegetal, assim, não é um sintoma da humanidade, mas um indício da nossa vida contemporânea nas metrópoles urbanizadas. Não se trata de fazer aqui um elogio idílico à natureza e, num movimento retórico muito bem conhecido, um complementar desabono às terríveis perversidades da vida em sociedade. Tampouco se trata aqui de defender um radical fugere urbem ou um nostálgico et in arcadia ego. Mas sim de chamar atenção para o que, nesse contexto contemporâneo no qual vivemos, gera às vezes muito sutilmente certos entraves ao nível estético.
Na medida em que Lévi-Strauss escolhe o tema da planta e sua liberdade para indicar como outras experiências humanas são possíveis naquilo que chamou de uma “ciência do concreto” e de uma “bricolagem” (Lévi-Strauss, 1989, p. 15 e 32), ele igualmente está nos indicando que o pensamento, as práticas, a arte e a cura entre os Tewa, os Balovale e os mananâmbal, são coisas intimamente associadas à busca de experiências de atenção ao que se passa ao redor, no ambiente. Coisas que atestam, portanto, uma profunda vinculação com ele. Mas também parece indicar que os expedientes de criação de sentido entre eles, ainda que sejam desprezados por alguns de nós como sendo “míticos”, “pouco abstratos” ou “anticientíficos”, promovem certas afinações estéticas que os permitem ver e notar aquilo que, para nós, permanece tão ignorado. O que, portanto, podemos aprender de dentro de nossas caixinhas de concreto daqueles que estão atentos às plantas e que fazem delas arte, prática de cura e devoção?
A ideia de que a arte dá a ver, mostra e exibe de modos muito peculiares certas coisas do mundo que são relevantes para a nossa organização individual ou coletiva é de Alva Noë, em Estranhas Ferramentas: arte e natureza humana, de 2016. Um indício emblemático dessa tese é, por exemplo, a infinidade de retratos na história da arte que tematizam a amamentação: prática que nos organiza imunológica, corporal, psíquica e afetivamente para além da constatação de sua determinação biológica. Na medida em que a amamentação é, também, uma prática cultural pelas razões mencionadas, ela é uma prática que nos organiza e, assim sendo, conquista enfoque na fatura artística. Nesse sentido, a recepção da arte torna evidente para nós, entre outras coisas, o que determinados indivíduos consideraram ou consideram hoje relevante. É que arte, desde sempre, tem uma singular capacidade de fazer visível tudo aquilo que se invizibilou para nós em função do hábito e da familiaridade. Por esta razão é que a recepção artística sempre nos apresenta uma oportunidade de encontro com a alteridade (ainda que dentro do familiar…) e com os modos pelos quais diferentes indivíduos enxergam, compreendem e tornam o mundo significativo. Se compreendo bem as sugestões de Noë (2016), a arte é, na sua concepção, uma oportunidade crucial de troca intersubjetiva, de alargamento da nossa perspectiva individual e, portanto, de aprendizagem.
A obra de Claudia Hamerski oferece uma oportunidade singular para reaprendermos a ver. A artista gaúcha, cujo trabalho é dedicado sobretudo ao desenho e aos diferentes processos criativos que o envolvem e expandem, faz, como bem nos lembra Hasse em Dimensões críticas da paisagem, de 2018, um percurso semelhante ao dos artistas viajantes, como o holandês Albert AEckhout e a inglesa Maria Graham. Pois é na viagem — ainda que dentro da própria cidade — que poderemos estar ainda mais atentos. É na viagem que se olha, em certo sentido, com vistas a conhecer o novo. Assim, ousar viajar dentro da própria cidade e brincar de ser estrangeiro é, complementarmente, ousar conhecer de novo o já conhecido, assumindo a aparente contradição dessa posição. É revisitá-lo à revelia da familiaridade, colocando-se intencionalmente como um dos pólos constitutivos do jogo da alteridade:
“Nós não desistiremos da exploração
E o fim de todo o nosso explorar
Será chegar ali mesmo onde começamos
E conhecer este lugar pela primeira vez.”
(T. S. Eliot, Little Gidding, parte V, in T. S. Eliot, Four Quartets, 1944, tradução minha).
Hamerski, num conjunto de trabalhos intitulado Topofilias, por exemplo, percorre diferentes cidades em busca das plantas. Não necessariamente as plantas bem compostas dos jardins ou vasos e tratadas pelo olhar humano mais como decoração; mas, sobretudo, as plantas baldias, selváticas, indomesticadas e que nascem, feito diminutos milagres, das fissuras de concreto de uma calçada, do eixo reto entre o piso e o muro, das frestas dos paralelepípedos. Já haverá aí — pelo menos para quem anda atento ao mundo — certamente um enigma: de onde brotou, como chegou até aqui, como sobrevive essa planta arredia? É assim, mediante essa atenção incomum de uma viagem, que se poderá engastar na própria experiência da visão um exercício intelectual.
Hamerski em suas viagens intracitadinas, fotografa essas plantas, as amplia em grandes proporções e remove todas as demais referências ambientais, conferindo centralidade ao elemento vegetal, ao ser planta. O resultado desse processo, que começa na exploração, é uma espécie de paisagem atípica, inquietante, e onde a composição desborda das exigências canônicas da pintura paisagística, aproximando-se, muito ao gosto da aquarela de Dürer, de um exercício da atenção. Ou seja, uma investigação da imagem e do que ela permite mostrar pela via arte, como estando estruturada na própria poética. Nada mais esperado da arte contemporânea, conforme indicou Anne Cauquelin em A invenção da paisagem, de 2007, onde o gênero tradicional da pintura de paisagem (e a pintura, como um todo) também passa a ostentar suas mesclas, seus apagamentos de fronteira e ampliações (Anne Cauquelin, 2007, p. 8). Dessas investigações pictóricas centradas na existência arredia das plantas que brotam do concreto, Hamerski resguarda, da sua ambientação original, apenas um indício da localidade: sua situacionalidade originária.
É assim que o endereço, o nome da rua ou a cidade onde essas plantas brotaram passam a designar cada um dos diferentes trabalhos, como se a artista nos sugerisse que nesses logradouros houvesse algo — vegetal, vivo, selvático — para além das associações familiares pelas quais os conhecemos cotidianamente. Diferentes conjuntos de plantas do mesmo local viram desenhos diferentes, agrupados pelo mesmo logradouro. Desse modo, o bairro Bom Fim, em Porto Alegre, transforma-se em um caleidoscópio tonal de mudas de beldroegão, heras e capuchinhas; a rua Perpétua Teles, em uma composição de centellas, gramíneas e um dente-de-leão vistoso; e a Liberdade, num arranjo colorido de folhas de samambaia e bertalhas.
Hamerski agrupa esses desenhos em grandes dimensões num conjunto que chama de Topofilias, termo emprestado da obra homônima do geógrafo sino-estadunidense Yi-Fu Tuan (1980). Por meio desse neologismo, o pensador designou de modo muito amplo o conjunto plural de laços afetivos que os indivíduos estabelecem com o ambiente material e que carregam, para eles, o reconhecimento de sua importância como lugares de inscrição significativa e simbólica (Yi-Fu Tuan, 1980, p. 107). Não é tanto o caso que Hamerski tenha necessariamente uma relação afetiva, em termos estritos, com os espaços nos quais descobre as plantas que desenha; mas que o próprio trabalho artístico de desenhá-las diligentemente, às vezes por dias ou semanas, passe a se transformar num lugar de investimento afetivo e simbólico para a artista. O desenho, portanto, naquilo que ele carrega desses espaços originários, passa a se tornar também topofílico sobretudo para ela. Núcleo de uma dedicação: lugar, modo e resultado de um cultivo. Assim, quando o desenho passa a se tornar também um espaço de intimidade para (primeiramente) a artista e (derivadamente) para quem os olha e com eles se maravilha, é que esses desenhos permitirão disparar um jogo mental de associações estéticas, intelectuais e emocionais:
“[…] em meu trabalho vejo que vão se criando essas várias camadas, pois o desenho também cria uma relação com coisas da tua memória, com o que tu pensas. Acho que quando eu era criança, e talvez para todas as crianças, tinha essa coisa de ver as coisas muito maiores do que elas são e de ficar imaginando coisas. Tudo isso vem quando tu estás ali trabalhando. Tu começas a lembrar de alguma coisa que tu fizestes. E aí vai se criando esse local de afeto, por isso pensar esses espaços como topofilias” (Claudia Hamerski, Entrevista com Claudia Hamerski, in Diego Hasse, Dimensões críticas da paisagem: Maria Graham e Claudia Hamerski, 2018, p. 86 e 87).
O tema, inicialmente mencionado, do abismamento infantil diante das experiências mundanas ou da permanência dessa disposição entre nós (os adultos) aparece nas palavras da própria artista. E explicaria, em certo sentido, também a escolha de fazê-los amplos, em grandes proporções: precisam ser grandes para que capturem a atenção dos adultos, para que sejam contemplados como grandes sítios de condensação da experiência por meio de uma inquietante paisagem, para que sejam um lugar propício da experiência estética. Será, portanto, por meio da arte que se poderá de fato notar essas existências vegetais esquecidas, tão ignoradas. Hamerski, ao se voltar a elas, não só as enaltece em seu esplendor baldio, mas também denuncia nossa desatenção para com elas. E, ao devolver-nos a nossa própria visão, devolve-nos também a capacidade notá-las ainda que através desse espaço inventado do desenho. Eis aí também um dos enigmas da arte — o modo singular por meio do qual ela engendra lugares, instâncias.
Em outros trabalhos (Eco, Improvisação XVII, 8B lascas, 8B lápis, O tempo presente pode ser longo? – Pulso e repouso) e séries (Improvisações, Notas de Rodapé e Details), o desenho passa a desdobrar novas amplitudes poéticas nas quais o trabalho de Hamerski ganha suas latitudes. Abraçando uma interrogação artística que vai além da exploração expressiva ou formal da superfície pictórica, ela leva o desenho até sua margem: convida-nos a ver o seu processo intelectual e poético; desmaterializa-o, como se por vezes fosse um mero epílogo, apresentando as suas etapas produtivas; transforma sua fatura em uma ação visível e em movimento.
O reconhecimento da borda do suporte enquanto um limite (supostamente) intransponível do pictórico, ou como aquilo que definiu tradicionalmente a essência da paradigmática noção de disegno, leva a artista a superar também nestes trabalhos os entraves artísticos formais e a precipitar-se para além deles. É quando passa, então, a explorar também a materialidade dos resíduos e a potência conceitual das escolhas e intenções, descobrindo um espaço vital que está para além do espaço pictórico. E nessas descobertas, arte e vida se misturam, suas fronteiras também se borram.
É, portanto, também na margem do desenho que um outro tipo de operação artística dinamiza sua obra, levando-a a explorar objetos físicos e situações instalativas. Voltar, depois da exploração, precisamente para o ponto de início é, nesse sentido, enfrentar-se com as próprias ideias que movem a arte muito antes, ou durante, sua corporificação em um suporte ou outro. É reconhecê-la também como algo pensante, mental. E capaz de expressar, ao seu modo concreto e cifrado, os conceitos por meio dos quais tornamos a vida significativa. Ou por meio dos quais podemos continuamente apreendê-la.
Como Whitman, Hamerski nos mostra que esta é a relva que grassa, ainda que esquecida ou ignorada, sob o fluxo da vida; que empreendendo viagens, somos capazes de estimular outros estados da nossa própria atenção, ainda que voltemos, como Eliot, ao ponto de início; e que tornar, pela via da arte, visível o invisível é um trabalho diligente, dedicado, que demanda investimento, cultivo, topofilia.
> Claudia Hamerski é doutoranda em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Suas individuais mais recentes são: O lugar costuma ser o centro, no Adelina Instituto (São Paulo, SP), em 2020); Entre fissuras, na Galeria Mamute (PoA, RS) em 2018; e Topofilias, nas Salas Negras do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS, PoA, RS). Possuí obras nas coleções públicas do MARGS, do Museu de Arte Contemporânea do RS (MACRS) e na Fundação Médica do Rio Grande do Sul. Vive e trabalha em Porto Alegre (RS). https://www.claudiahamerski.com/