Quando algo acontece, pergunte a diferentes pessoas o que ocorreu e cada uma terá uma história diferente para contar. Cada pessoa irá enxergá-lo de acordo com sua circunstância e contexto, conforme sua geração, o tanto de experiência de vida que já viveu e o tipo de experiências que teve.
Compreender a existência dessas diferenças de percepção às vezes é muito difícil de compreender, respeitar e aceitar. E quanto mais próximas e amadas são as pessoas, mais desejamos que elas percebam os fatos da mesma maneira que a gente. Quando são acontecimentos familiares, parece que tudo se potencializa, o fósforo se acende e o fogo se espalha rapidinho. Não sei se isso acontece na tua casa, mas, às vezes, a minha parece a música da série A Grande Família, aquela série antiga da Rede Globo:
“Esta família é muito unida
E também muito ouriçada
Brigam por qualquer razão
Mas acabam pedindo perdão”
Tem vezes que custa caro, a gente sai chamuscada, dolorida, demora para sarar, a cicatriz fica feia. Mas não é só a gente que sai ferida. Outras vezes, quem fere somos nós. Por conta de “n” motivos. Alguns conscientes, outros inconscientes, outros imaginários. Gostaria de propor para desvendarmos um pouco dessa, um tanto complexa, teia familiar na qual vivemos e nem sempre percebemos.
As gerações
Fala-se muito nas gerações Baby Boomers (nascidos entre 1946 e 1964, geração pós 2ª Guerra), X (nascidos entre 1965 e 1980), Y ou Milenium (nascidos entre 1981 e 1996), geração Z (nascidos entre 1997 e 2010) e Alfa (pessoas nascidas a partir de 2010). Entretanto, penso que a divisão das pessoas em gerações acaba por colocá-las em grandes rótulos, pois além da data de nascimento, há que se considerar para revelar questões de comportamento mais assertivas, fatores como gênero, grupo socioeconômico, origem, cor, entre outros que influenciam, pressionam e se atravessam ao longo da vida. Ciente de todas essas circunstâncias, já podemos imaginar o tanto de diferentes percepções que um mesmo acontecimento pode acender.
Um microcosmo de faz de conta
Se a gente olhar para um microcosmo familiar, já podemos ter uma pequena amostra:
·Um casal de avós, moradores do interior, na faixa dos oitenta anos, aposentados, ainda autônomos (ou seja, capazes de tomar suas próprias decisões), mas já com limitações (ele com uso de andador, ela com bolsa de colostomia). Ambos ativos.
·O filho mais velho, casado, médico e professor universitário, na faixa dos 60+, com dois filhos, de 28 e 23 anos, morando na capital do estado. O de 28 anos, casado, com um filho de 01 ano, morando em outro estado. O de 23 anos, morando no exterior há dois meses.
·A filha do meio, divorciada, servidora federal, na faixa dos 50+, com um filho de 20 anos, ambos morando juntos, na capital do estado.
·A filha mais nova, solteira, professora municipal, na faixa dos 45+, com uma filha de 10 anos, morando juntas, na mesma cidade que os pais.
Uma árvore com vários galhos
Olhando pra essa estrutura familiar, a gente pode observar que, para além das gerações que acima descrevemos, também podemos examinar as diferentes “gerações” de núcleos familiares ali representados: avós, pais e netos. Nessa estrutura, também vamos encontrar a chegada de genros e noras que vieram de outras origens, outros contextos e histórias, o que potencializa a criação de culturas familiares próprias em cada núcleo. Dessa multiplicidade de olhares é composta a convivência familiar. No entanto, a gente costuma rotular “Os Fulanos pensam assim”, “Os Beltrano fazem desse jeito”, “Os Cicrano não fazem de outro jeito”… Será mesmo?
Diferentes ciclos, tudojuntomisturado
Outra perspectiva nessa multigeracionalidade familiar é que iremos perceber que dentro da mesma família convivem núcleos familiares em diferentes “ciclos de vida”. Por exemplo, olha a estrutura do microcosmo acima, teremos o casal de avós vivenciando sua velhice avançada, o casal do filho mais velho enfrentando o período do ninho vazio, e o casal do filho de 28 anos tendo que lidar com o primeiro filho ainda bebê. Cada núcleo experienciando diferentes fases do ciclo de vida de uma família, ao mesmo tempo. Isso não acontece sozinho, pois cada núcleo recebe pressão de seus respectivos ambientes de trabalho, amigos, estudo etc. Nesse movimento, uns precisarão do suporte do outro. Se tudo estiver ajustado, conseguirão.
Família se escolhe?
Outra questão que podemos observar quando falamos sobre família é a pouca liberdade que temos. A gente não escolhe o pai ou a mãe, muito menos os avós. A gente nasce com eles. Ou são eles que nos escolhem. Podemos escolher se queremos ou não ter filhos, mas depois a gente não pode se eximir da responsabilidade do exercício da parentalidade. Também podemos escolher casar, mas se uma vez descasados, ele ou ela sempre será nosso ex-cônjuge e uma história familiar carregaremos, em especial se filhos existirem.
Um grande parêntese para quem é mulher sobre essa reflexão
Aqui cabe um grande parêntese para nós, mulheres, refletirmos sobre até que ponto a gente faz escolhas conscientes sobre o casamento e a maternidade ou porque escutamos desde que nascemos que casar e ter filhos é a nossa natureza. E lá pelas tantas, começam a nos martelar (ou vozes internas nos dizem) que “estamos na idade de ter filho”, “passamos da idade de engravidar”, “toda mulher possui o dom da maternidade”, “todas da minha idade já casaram”, “já tô ficando pra titia”, etc.
Cada família, uma história, várias versões.
Ao longo da trajetória de cada família, uma história existiu. Nela, o casal pode ter iniciado com muita dificuldade, prosperado, mudado de cidade, vivido em diferentes países, perdido status social e financeiro, tido diferentes dificuldades e conquistas ao longo do tempo. E nesse curso de vida da família, conforme cada filho foi nascendo e vivenciando partes dessa história, eles foram sendo impactados de variadas maneiras e entre eles por ela, como cada pessoa é diferente, uns mais, outros menos.
Laços de família
No Brasil, conforme dados do último Censo, tanto os núcleos familiares estão diminuindo de tamanho, antes tinham mais filhos e hoje cada vez menos, como geograficamente estão mais distantes, já que muitos moravam num mesmo espaço e hoje em diferentes bairros, cidades ou países. Agrega-se a isso uma cultura cada vez mais individualista e consumista, onde a todo momento nos é afirmado que é necessário produzir cada vez mais, pois tempo é dinheiro, restando-nos pouco para o convívio e o estreitamento dos vínculos (e presentes caros não compram amor). O resultado de tudo isso acaba sendo, em muitos casos, laços familiares que se fragilizam.
Outro grande parêntese para mulheres
Nesse grande caldo, as grandes responsáveis pelo cuidado da família somos nós, mulheres, seja de criança, marido, pais ou sogros, mesmo que também estejamos no mercado de trabalho. E não importa se queremos, se gostamos, se estamos cansadas ou doentes, simplesmente acontece porque nos é dito que é “a mulher quem deve cuidar”, como se viéssemos aparelhadas com esse saber. A “novidade” é que isso não é verdade. Mulher não vem com nada de especial a esse respeito. Homem, assim como nós, tem o mesmo direito, dever e potencial para aprender a cuidar.
Quem não se comunica se trumbica
Quando a gente percebe essa rede familiar e os contextos envolvidos nela, compreende o quanto é importante saber se comunicar, ler sinais ditos e não ditos, aprender a lidar com conflitos, colocar-se no lugar da outra pessoa. A linguagem foi o que nós, animais humanos, desenvolvemos em primeiro lugar, tal a importância dela. No bebê também é a sua primeira forma de comunicação, primeiro pelo olhar, choro, balbuciar. Mas sempre a melhor saída é a comunicação. Uma técnica para lidar e aprender com o conflito, ensinada pelos diretores que conduzem o estudo sobre longevidade e bem-estar da Universidade de Oxford, é o W.I.S.E.R., explicada aqui.
Onde tudo isso acaba desembocando?
Está na boca da sabedoria popular que “família é tudo”, “família é o mais importante”. É o seu caso também? Então, quanto ela é prioridade para você e de que maneira? Quem é família para você?
Qual é o tempo de qualidade que você está investindo? Será que não é preciso fazer uma faxina nela? Afinal, como a gente nem sempre escolhe a família, pode ser que você precise abrir mão de algumas pessoas para ter paz. Não significa que você irá deletá-las da sua vida, mas quem sabe manter um distanciamento saudável? De outras, talvez seja o caso de buscar mais proximidade, pois são as que trazem a energia que te faz bem. Sabe quem são?
Leia aqui minha coluna onde escrevi um guia para ampliar e melhorar seu Universo Social que pode ser aplicado às suas conexões familiares.
Conforme o mais longevo estudo sobre longevidade e bem-estar, desenvolvido desde 1938 pela Universidade de Oxford, o diferencial para as pessoas viverem mais tempo e melhor são as conexões sociais e os vínculos de boa qualidade. No geral, na família, a gente tem uma força poderosa para encontrar essa energia. É o seu caso?
Todos os textos de Karen Farias estão AQUI.
Foto da Capa: Freepik