Logo após o golpe de 1889, Euclides da Cunha não tardou seu parecer: “Esta não é a República dos nossos sonhos!” A frase poderia ser infinitamente repetida ao longo de nossa história (as “repúblicas” dos coronéis, do café com leite, patrimonial, cartorial, clientelista, de Curitiba, do Galeão… hoje temos até a “república das entregas”, provavelmente inspirada no iFood!): a própria noção de república clientelista ou patrimonial, trabalhada por Faoro, mostra o quanto nunca tivemos uma legítima separação entre interesse privado e bem comum/público. E a apropriação privada dos bens públicos é a norma de nossa vida política: do orçamento secreto às emendas PIX; dos relógios Rolex aos lobbies parlamentares; das estradas públicas em fazendas privadas às licitações fraudulentas…, em que o Estado aparece claramente como um obstáculo à organização social. Paro por aqui: este artigo tem limite de linhas e de paciência moral!
Não é sem razão que mais de 40% de nossos deputados federais respondem criminalmente ou administrativamente por ilícitos cometidos dentro ou fora da vida pública: a representação política servindo de escudo homiziador às falcatruas individuais! O interessante nisso tudo é constatar a existência de uma ESTÉTICA DA CORRUPÇÃO, com sua gramática, seu léxico, seu vocabulário, sua sintaxe, seus arranjos verbais. São frases decoradas e recorrentes nos praticantes de ilícitos, pronunciadas, em geral, quando são flagrados. Cito alguns exemplos para você, querido(a) leitor(a), que poderá, claro, usá-las caso venha a se meter em alguma forma de depravação moral envolvendo a vida pública e, eventualmente, venha a ser descoberto. Eis:
a) “Reiteramos nossa confiança nas autoridades e estamos colaborando nas investigações”;
b) “Ainda não tivemos acesso aos autos”;
c) “Minhas palavras foram tiradas de contexto”;
d) “Acredito na imparcialidade da Justiça”;
e) “Tudo baseado na delação de um notório criminoso”;
f) “Sou inocente e sempre pautei minhas ações de acordo com a ética e a moral” (é a minha preferida!):
g) “Nunca me desviei da defesa do interesse público”;
h) “Deus e minha família são testemunhas de minha honestidade com a coisa pública”;
i) “Trata-se de clara perseguição ideológica, visando lacração e cancelamento de um homem honesto”.
j) “São acusações sem nenhuma prova e mostrarei minha inocência no momento oportuno”…
Trata-se, claro, da criação de uma linguagem específica que faça com que o interesse privado (o roubo, a delinquência pública, o desvio moral, o enriquecimento ilícito, a venda de patrimônio público) não apareça como tal e, sim, como resultado da “guerra de narrativas numa sociedade polarizada”: era preciso, pois, uma ESTÉTICA, uma forma própria, uma sonoridade re-conhecida e palatável, onde o sujeito da frase se dissolve numa semi-impessoalidade plural, os verbos são conjugados em tempos passados (um passado inocente) ou futuros (que provarão tal inocência), os predicados são vazios e apontam para algo indefinido situado num tempo “redentor”, quando a Justiça se fará…
Acho muito interessante que a ausência de republicanismo em nossas instituições tenha gerado uma linguagem própria, assim como o republicanismo moderno gerou seu léxico (bem comum, vontade geral, legitimidade, liberdade pública…): trata-se de oferecer uma ESTÉTICA que esconda a ausência de ÉTICA (regras imperativas da relação de Eu com os OUTROS), que Aristóteles considerava como indissociável da “vita activa” (política).
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Foto da Capa: Wilson Dias / Agência Brasil