A menina pede que a avó conte uma história. Chapeuzinho Vermelho. Ambas brincam. – Por que esses olhos tão grandes, Vovó? -. Enquanto a avó tenta lembrar os detalhes do enredo, a neta olha atentamente, como se fosse a primeira vez que a vê e pergunta: – Vovó, por que esses olhos tão molhados? Chorou, Vovó? Ou é a chuva lá fora?
A situação dramática que vivemos, além de muitos outros problemas, trouxe a necessidade para muitas famílias de reconfigurar suas vidas e seus lares. Dia desses recebi uma solicitação de parte da Assessoria de Imprensa do Hospital Moinhos de Vento, onde chefio o Serviço de Reumatologia. Um texto para o blog de orientações a pacientes. O tema: os cuidados quando se necessita acomodar um familiar idoso, muitas vezes com limitações impostas por alguma doença crônica e que ficou desabrigado devido à enchente.
É uma questão importante. Além de todas as preocupações relacionadas às enfermidades pré-existentes, algumas bem características dessa faixa etária, há também aquelas decorrentes do desastre. Pessoas desabrigadas que passaram frio, que tiveram contato com as águas da enchente ou sofreram ferimentos, poderão agravar doenças degenerativas, autoimunes ou ainda desenvolver infecções. Também algo que deve se acentuar ainda mais com o passar do tempo, as manifestações psíquicas decorrentes desse trauma.
Algumas dicas práticas devem ser lembradas. A primeira preocupação é com a possibilidade de quedas e fraturas, uma situação que aumenta com o envelhecimento. Em nossas casas, nem sempre lembramos do perigo de um piso molhado, de um tapete solto, de uma mesinha ou peça de decoração num local de passagem. O acolhimento a esse idoso deve nos ajudar a corrigir essas situações, que servirão para todos, não só para os mais suscetíveis ao resultado, muitas vezes nefasto, de um acidente tão corriqueiro.
É inegável que a presença de um novo habitante na casa, por mais afeto e carinho que possa estar envolvido, exige alterações de uma rotina já acertada. Lembrar ainda que o familiar poderá se sentir constrangido em necessitar desse acolhimento emergencial. Ajudá-lo é também minimizar que se sinta um peso, um problema. Buscar criar uma ambientação que o faça se sentir em casa, fotografias, alguma referência ou estimular que mantenha algum hábito que caracterize a sua individualidade é importante e empático. Principalmente àqueles que até então gozavam de razoável autonomia.
Mas, se por um lado tudo parece sofrimento, desconforto, é preciso destacar que em muitas situações, o que é uma contingência pode se transformar na oportunidade de uma maior convivência, entre filhos e pais, netos e avós. A recuperação de laços e cuidados, de ligações familiares, muitas vezes distantes. Aqueles que ora estão necessitados de abrigo e atenção poderão também retribuir com sua experiência e auxiliando em pequenas tarefas e, por exemplo, fazendo companhia e cuidando das crianças. Assim, esse período certamente poderá também servir de um aprendizado de um modelo familial que em parte se perdeu.
Como essa avó e essa neta que agora brincam e constroem vínculos.
Vínculo e brincadeira, brincadeira e vínculo. Na origem dessas palavras uma conexão. Vínculo é tudo que aperta, liga, ata, vem do latim vinculum: laço. Brincadeira vem da palavra brinco, etimologia que tem origem também no mesmo termo latino. Segundo a pedagoga Tânia Ramos Fortuna, em Vida e Morte do Brincar: “[…] brincar, de origem latina, resulta das diversas formas que assumiu a palavra vinculum, passando por vinclu, vincru até chegar a vrinco. É assim que do significado inicial “laço” passa por adorno, enfeite, joia que se usa presa na orelha ou pendente dela, até chegar à ideia de brinquedo e brincadeira. Na mitologia grega, Brincos eram os pequenos deuses que ficavam voando em torno de Vênus, alegrando-a e enfeitando-a.”
Em se tratando de vínculos, durante muitas décadas os psicanalistas basearam seus esquemas referenciais virtualmente em dois, o do amor e o do ódio. A esses, o britânico Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979), pioneiro da dinâmica em grupo, acrescentou mais um e passou a valer a tríade: Amor, Ódio e Conhecimento.
Para David Epelbaum Zimerman (1930-2014), médico, psiquiatra e eminente psicanalista gaúcho, caberia acrescentar um quarto tipo de vínculo, o do Reconhecimento. O vínculo do reconhecimento nas quatro acepções que ele permite: “Re-conhecimento”, que é voltar a (re)conhecer o que preexiste dentro de si; “Reconhecimento do outro”, isso é, entender que o outro não é um mero espelho de si, mas alguém que tem a sua própria individualidade, o que é fundamental para o crescimento psíquico e o respeito às diferenças; “Ser reconhecido aos outros”, a capacidade de consideração e de gratidão em relação aos outros; e, finalmente, “Ser reconhecido pelos outros”. Nas palavras de Zimerman: – “Não é possível conceber qualquer relação humana em que não esteja presente a necessidade de algum tipo de um mútuo reconhecimento, o qual é vital para a manutenção da autoestima e a construção de um definido sentimento de identidade”.
A menina brinca com a avó no conforto do apartamento da família, reconhecem-se uma à outra. Crianças pulam nos colchões dispostos na quadra de esportes do abrigo improvisado. Criam-se e recriam-se vínculos, é preciso reconstruir identidades, sonhos e esperanças. Também novos vínculos de confiança em gestores, administradores, detentores de cargos públicos. É preciso que se reconheçam erros, fraturas e negacionismos, para que tanto sofrimento não reste em vão.
De um laço de fita do cabelo, a menina improvisa um lenço e seca os olhos da avó. Elas sorriem. Depois de um mês, a chuva parece ter desistido e espera-se que um quero-quero apareça na janela com um ramo de oliveira.
Foto da Capa: Copilot/Gerada por IA
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