Há mais ou menos uma década, quando eu era editor em uma grande redação do Estado, chegou uma mensagem na minha caixa de e-mails, esse dispositivo saído de um filme de ficção científica que vi nascer e era tão útil há 25 anos e que hoje, aparentemente, virou depósito de propaganda não solicitada – um pouco como a caixa de correio real, aliás. A mensagem a que me refiro havia sido enviada por uma jovem e ambiciosa colega de trabalho que estava à frente de uma reformulação de um caderno do jornal, que ia experimentar a ideia de ter suas próprias “brands”. A equipe formada para isso estava à procura de um estagiário, acho, ou talvez fosse um repórter iniciante (no jornalismo, empresas costumam confundir as duas coisas com bastante frequência). E aí uma mensagem geral foi enviada para toda a redação solicitando que o encaminhássemos para quem conhecíamos. Conto essa história porque foi a primeira vez que li num texto algo parecido com: “estamos procurando candidatos com bom texto e que tenham pensamento disruptivo“.
Imbuído da mais legítima boa vontade, eu mandei um e-mail para a jovem colega apontando que talvez aquele adjetivo não fosse o melhor para o que eles estavam procurando, uma vez que “disrupção” tem o significado não de colaboração criativa, mas de ruptura violenta, agressiva e traumática. A moça me respondeu apenas com dois pontos e um meio parêntese, o que equivalia a uma forma primitiva de emoji sorridente quando o programa de e-mail interno da redação na época não era ainda equipado com as carinhas em forma de figura, como hoje. E depois nunca mais tocou no assunto e seguiu mandando e-mails com o mesmo termo.
Inglês sem escalas e Efeito Yazigi
Naquela época, eu corria o risco de estourar uma úlcera que eu sequer tenho a cada vez que havia uma reunião de editoria com o pessoal do “comercial” para ouvir alguma papagaiada corporativa sobre novas diretrizes. Não porque o papo era chato, e era, mas muitas reuniões são chatas e nem por isso você deixa de acompanhá-las, já que o assunto interessa ou terá repercussões diretas no seu trabalho e, por que não, na sua paz de espírito. Mas o que me fazia desligar completamente da falação das Barbies corporativas era o tanto de expressões em inglês desnecessárias que elas contrabandeavam para o discurso com uma naturalidade desconcertante. Coisas como: “Em no máximo duas semanas… meses, nós pretendemos dar o start no projeto”. “Tu precisas elencar duas metas além do teu job description“. “Temos que ter bem delineado o target desse material”. “Como não foi vendido patrocínio, não tem budget pra essa cobertura”. Aquela turma de arrombados conseguiu inclusive fazer o querido e tradicional termo “fechamento”, corrente para o prazo limite de diagramação e edição do jornal, ser substituído aos poucos por esse horrendo deadline que, pelo que vejo nas interações com jornalistas mais novos, se tornou hegemônico.
Nenhuma daquelas frases trazia um conceito de fato novo ou original que só pudesse ser definido pela complexidade do termo estrangeiro sem equivalente perfeito em nosso idioma, como ocorre vez ou outra com termos da filosofia, por exemplo. Não, qualquer uma daquelas babaquices balbuciantes tinha uma definição paralela perfeitamente aceitável em português, mas o pessoal preferia exercitar o “inglês para business” (aliás, outra das palavras recorrentes). Recordo agora, aliás, com alguma curiosidade, que naquela primeira metade dos anos 2010 ainda não havia se tornado de domínio público o estarrecedor mindset que hoje campeia no discurso de coachs picaretas (perdão pelo pleonasmo).
Era mais do que ridículo, era um pouco enlouquecedor, aquelas pessoas tão mais novas do que eu, sem vergonha alguma de haverem se agarrado como carrapatos à muleta do jargão para parecer que tinham algum conhecimento secreto ou sabiam vagamente do que estavam falando. Mal sabia eu, contudo, que o horror estava apenas começando, e que em breve teríamos não apenas uma legião de descabeçados usando diretamente termos do inglês em lugar de palavras perfeitamente úteis em português. Em breve, teríamos a explosão do quadro entristecedor que temos hoje e que eu batizei carinhosamente de “efeito Yazigi”: o uso em português de expressões que são originárias do inglês, mas mal traduzidas e tão deslocadas em nossa língua que fica clara ao primeiro contato a sua origem abastardada, como o hoje bastante disseminado “disruptivo”, do qual falei nos primeiros parágrafos.
Aliás, em sucessivas reuniões posteriores com o pessoal da gerência corporativa e do “comercial” (que, imagino, hoje já seja só “marketing” mesmo), ouvi outras pérolas do idioma atravessado originárias da má leitura de manuais e livros de coach em inglês. Mas, sendo bem honesto, um dos mais constrangedores deles eu ouvi mesmo de uma colega jornalista, aliás, da minha geração, recém-transformada em nome grande na hierarquia: “Vamos alinhar as propostas para garantir que esteja todo mundo na mesma página“. Cara, como aquilo me doeu no fígado e no ouvido…
Há outro exemplo que, aposto, a esta hora já pipocou na mente de todos, o famigerado, horroroso, ignaro e aparentemente imbatível “é sobre isso”. Tradução capenga de uma frase inglesa usada muitas vezes como um resumo para o “cerne da questão”, ou às vezes para ressaltar o subtexto de uma questão mais abrangente. Acho que ninguém perderia um braço ou o dinheiro da merenda se fosse usado, em seu lugar, um simples “é disso que se trata”, “essa é a questão” ou algo parecido. Mas, com a nova geração que fala melhor inglês do que português, essa luta eu sei que já perdemos.
Inversão semântica
Outro ponto interessante nesse tema foi levantado pelo professor Luís Augusto Fischer num editorial há algumas semanas da revista Parêntese: a mudança total de sentido da expressão “entregar” quando usada no contexto futebolístico. “Entrega” e suas derivações há horas vêm sendo repetidas em textos sobre arte e apresentações artísticas (que hoje também chamam, já que eu estava falando nisso, de “performances”), mas usando não o significado corrente em português, mas um que vem diretamente do inglês “to deliver“, o de “executar com maestria” ou de um “desempenho que cumpre ou suplanta expectativas.” “Como sempre, o guitarrista entrega um solo arrebatador”. “As expectativas eram altas, mas o artista entregou tudo e mais um pouco”. Transplantado para o universo do futebol, esse tipo de acepção entra em conflito com outra anterior e plenamente disseminada, a de “entregar” no sentido “Toninho Cerezo” do termo. Eu não vinha assistindo a muitos jogos recentemente, mas o promissor clássico entre Real Madrid e Barcelona eu resolvi ver, e pude verificar a precisão do comentário do Fischer quando o comentarista exaltou ao longo da partida a atuação do meio-campista Valverde, do Real Madrid, que segundo ele estava “entregando em todos os setores do campo”. Fiquei por um breve momento na dúvida se ele estava dizendo que o cara passou o jogo todo dando passe errado, perdendo o tempo da bola e atrasando errado para o goleiro, e imaginando por que o treinador não o substituía. Só não achei ainda mais esquisito porque me lembrei do texto do Fischer.
Múltiplas razões
Não creio que haja uma única razão para esse estado de coisas, são vários os fatores. Um mundo ultra conectado em um cenário internacional em que a língua inglesa ainda é hegemônica; uma jovem geração que claramente não conhece o próprio idioma a fundo, a ponto de pensar que não há nele alternativas para aquilo que ela precisa expressar, adotando, assim, a versão Google Tradutor; a proliferação de campos específicos nos quais o inglês é a “língua franca”. Curiosamente, se no marketing em várias de suas vertentes há uma preferência por usos diretos de termos em inglês usados – como transformar “liquidação” ou “oferta” em “off”, ou chamar uma tigela de “bowl” para cobrar mais caro por ela – a moda da transformação de vocábulos ingleses em verbos em Português parece ter uma raiz profunda em como os jogos, por exemplo.
Comunidades de jogadores em rede de coisas como os mais antigos Call of Duty ou Counter Strike ou os mais recentes Fortnite e PUBg popularizaram um léxico específico que misturava português com os termos advindos estrangeiros da programação original dos jogos. Como os últimos 15 anos viram também a popularização absurda de jogadores habilidosos com seus próprios canais de streaming de jogos, com transmissões de às vezes oito ou 10 horas de jogatina e milhões de visualizações e de fãs, penso que está por aí parte da raiz desse fenômeno contemporâneo tão específico, em que têm circulação naturalizada termos como “rilar” (curar o personagem com o qual você está jogando após tomar dano, advindo do inglês heal) “nerfar” (tornar um dispositivo ou personagem mais fraco, em alusão às “nerfs”, armas de brinquedo que disparam projéteis de espuma que parecem Cheetos).
E, claro, o pior e, aparentemente, mais disseminado de todos os exemplos: tankar, oriundo de to tank, que na linguagem dos jogos costuma ser usado para personagens mastodônticos superfortes que aguentam muito tiro, porrada e bomba. Assim, tankar é o novo suportar, aguentar, tolerar, resistir, aturar, pensando em sinônimos que me ocorreram no intervalo de 30 segundos, mas que parecem não ser suficientes, então se espalha mais do que as chamas do incêndio na Califórnia esse terrível e intankável “tankar”.
A questão é que, enquanto esse vocabulário é específico de uma subcultura com identidade própria, como a dos games, é uma coisa, mas a popularização da coisa toda leva a esse quadro engraçado quando claramente nem jornalistas profissionais mais conseguem discernir quando estão pensando num idioma e escrevendo em outro.
Não estou necessariamente reclamando de modo apocalíptico de como o uso da mídia contemporânea está pervertendo o uso do idioma e o substituindo por uma versão estrangeira mais pobre, não se preocupem, eu não sou português. Estou inventariando um fenômeno e imaginando o que será disso no futuro. Não está em curso o mesmo processo de formação de gírias que perpassa qualquer idioma, é outra coisa. Estamos vendo pessoas pensando em inglês e falando em português, pondo em choque as duas estruturas. Isso somado a um pensamento contemporâneo que vê na importação acrítica de modelos sociais, econômicos e políticos norte-americanos e temos aí um quadro que se revela inquietante – muita gente que arranca as unhas de medo de que o Brasil vire uma Venezuela não parece tão preocupada de o país se tornar uma outra Porto Rico, por exemplo.
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Foto da Capa: Gerada por IA.