Não sei vocês aí, mas eu tenho que confessar que eu não aguento mais a Taylor Swift. Na remota possibilidade de algum dos meus seis ou sete leitores ser um “swiftier”, como costumam ser chamados seus muito passionais fãs, vou deixar vocês pendurados por um instante em sua trêmula indignação enquanto faço uma breve digressão ao meu remoto passado.
Quando eu estava no que então ainda não se chamava Ensino Médio, mas simplesmente Segundo Grau, eu morava em uma cidade de 60 mil habitantes no meio da Campanha. A TV Globo era a única emissora passível de ser assistida o tempo todo em todo o município (a Bandeirantes pegava de forma mais ou menos nítida dependendo do dia, das condições atmosféricas e do lugar na cidade em que você morasse). Videocassete era um bem de consumo caro e a cidade ainda não havia passado pelo boom das videolocadoras que chegaria logo nos anos seguintes. O que tornava aquele um mundo imerso em uma tediosa monocultura de interesses.
Quando não se discutia a novela, todo mundo se reunia no recreio para comentar, na segunda-feira, o filme que havia passado no Supercine no sábado. Se você não tivesse visto, bom, talvez a solução fosse ficar fora dos papos até quarta-feira, quando o pessoal enfim começava a mudar de assunto.
Recupero esta história porque mesmo com a evolução da tecnologia até patamares inimagináveis naquele tempo, oferecendo uma pulverização em escala atômica de elementos, fontes, temas, músicas, artistas, atrações, até mesmo “produtos” culturais, essa palavra da moda que eu detesto com todas as forças (como já escrevi aqui), em certas ocasiões me parece que o mundo com o qual eu tenho contato em minha bolha eletrônica se tornou uma imensa reconstituição macroscópica do pátio do Colégio XV de Novembro, em São Gabriel, e todo mundo parece só falar do mesmo assunto. E aí que eu chego à aparentemente provocativa mas bastante sincera afirmação com a qual eu abri este texto: eu não aguento mais a Taylor Swift e eu sinceramente não sei mais onde me refugiar para evitá-la.
Música
Que fique claro que eu não tenho nada contra a existência de Taylor Swift, nem contra sua pessoa, nem contra sua obra, que eu conheço muito pouco e o que conheço não me comoveu nem me impressionou. Eu sei muito bem que sou um homem de meia idade que se formou como apreciador de música ouvindo gauchismo de CTG e barulho de Heavy Metal e que, assim, suas músicas não são pra mim, e tá tudo bem. A questão que me deixou primeiramente perplexo e mais tarde um tanto exausto é a onipresença monocórdica da persona Taylor Swift para todo lugar em que você dirige um vago e desatento olhar.
Como eu disse, eu não curto o som de Taylor Swift e sei que teria uma dificuldade real para citar o nome de três canções dela que eu tenha ouvido na vida – passei por esse teste esses tempos aplicado pelos jovens e talentosos estagiários que trabalham comigo e só consegui me lembrar do título de duas, e em ambos tinham umas preposições que eu não me lembrava ou havia confundido com outra. As duas, aliás, já têm mais de 10 anos, fui informado pelos jovens sabedores (abraço, Vittoria e Samuel). Mas para mim esse desconhecimento é parte bem-sucedida de uma estratégia até pouco tempo possível de ignorar voluntariamente o trabalho de alguém que não me diz muito em termos artísticos. Basta restringir suas experiências com música a coisas antigas ou a gêneros muito específicos e pronto, você, efetivamente, bloqueou qualquer conhecimento sobre o trabalho musical de Talyor Swift, deixando a cantora para aqueles que a admiram e a seguem, sem prejuízo para ninguém.
Só que a vida não é tão simples, não é mesmo? Para começo de conversa, embora eu não seja um cara que ouça tanta música, eu ainda mantive de uma época pretérita em que comprávamos revistas em banca o hábito de seguir aqui e ali nas redes perfis de publicações da área, como a Rolling Stone, por exemplo – e aparentemente, pela minha equivocada impressão empírica, a revista só teve dois assuntos a tratar no ano de 2023: a gigantesca nova turnê da Taylor Swift e uma banda de três artistas indies chamada boygenius, cujo trabalho não conheço, mas pela frequência com que estiveram nas manchetes da publicação aparentemente são as novas Nirvana e as novas Beatles ao mesmo tempo. Talvez sejam, eu não ouvi. Talvez, também, Taylor Swift seja, como seus fãs defendem, uma cruza de Beethoven com Leonardo Da Vinci e eu que esteja falhando em ver seu apelo, aceito a hipótese. Não vejo problema em manter distância dela para todo sempre – o problema é que ela não parece manter distância de mim…
Cinema
Ok, talvez eu devesse então parar, simplesmente, de ler coisas sobre música. Só que eu sou um apaixonado por cinema (mais até do que por música, em que meus gostos são bem específicos e muito excludentes). Embora não escreva mais profissionalmente sobre o assunto, gosto de dar meus pitacos a respeito aqui e ali, e continuo membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS – aliás, a sigla é pronunciada ASSIRS em vez de AQUICIRS, e em anos como integrante ainda não descobri por quê). Só que, do nada, lá estava Taylor Swift no noticiário de cinema porque, aparentemente, a versão cinematográfica de sua última turnê, aquela mesmo que era praticamente o único assunto da Rolling Stone, virou um filme e arrecadou uma grana de fazer inveja aos contadores da Marvel. E estava concorrendo também no Globo de Ouro. Aliás, embora esse longa sobre a turnê em particular não tenha sido dirigido por ela, Swift tem há anos comandado as câmaras de seus próprios clipes e andou lançando um curta-metragem também. Se é bom? Não sei, não vi, mas sei que existe porque parece também impossível ler sobre cinema sem tropeçar numa notícia sobre a cantora. Talvez no futuro ela resolva virar diretora de cinema ela própria e aí a situação vai ficar ainda mais complexa…
A possibilidade de eu deixar de ler sobre cinema é nula, então acho que vou ter que me acostumar com isso. A cantora também vem sendo assunto nas páginas de economia da cultura devido a sua queda de braço com sua gravadora e com o rico babaca (referência aqui) que comprou os direitos de seus discos anteriores e à forma como retomou as próprias músicas simplesmente regravando os discos com os mesmos arranjos e lançando de novo, com apoio de seu fandom para garantir a sua “integridade artística” (e o PIX gordo dos lucros do negócio, também, mas isso eu vi falarem menos).
Shows
Digamos que eu elimine a cultura do meu horizonte e passe só a ler notícias de caráter geral e, talvez, aqui e ali, algum rumoroso caso policial com ares hiper sensacionalistas, como muita gente que eu conheço. Pois este ano lá estavam também esses espaços invadidos pela estrela pop, já que seus dois shows no Rio foram uma amostra grátis da hipotética existência do inferno como retratada na mitologia do Cristianismo: um lugar superquente, lotado, e desconfortável em que você é submetido a torturas excruciantes por ter cultivado a ideia pecaminosa de ter desejado algum prazer e diversão na vida.
Aqui o tom humorístico desta crônica provocadora recua um pouco porque, de todos os lugares e instâncias que andam me forçando a tomar conhecimento da vida e da obra de Taylor Swift, esta talvez fosse a única que eu de fato gostaria de saber um pouco mais sobre os desdobramentos. Ana Clara Benevides, uma jovem de 23 anos, morreu porque as intervenções gananciosas realizadas pela organização do espetáculo transformaram o Engenhão em um Wok japonês no meio da maior onda de calor que o Brasil experimentou em anos. E decidiu que se você quisesse água, você precisaria comprar – de 8 a 10 reais por garrafa em um show cujos ingressos custaram entre R$ 450 e R$ 850.
E por semanas só o que se lia em toda parte era o suspense sobre a cantora, que tem “uma ligação tão próxima” e “tão especial” com seu fandom falaria algo no segundo show sobre uma jovem que morreu no primeiro pelo simples fato de ser sua fã. Quando a única dúvida sobre isso só poderia ser mesmo imputada à ingenuidade dos próprios fãs. No fim, Taylor não mencionou a vítima ou sua família, e mesmo o traslado do corpo da jovem de volta a seu Mato Grosso do Sul natal foi organizado por um fã-clube da artista que correu uma sacolinha. É claro que ela não vai mencionar nada que possa gerar derrota num eventual processo, então cantem, paguem o ingresso e sigam a vida. Acho um pouco decepcionante o quanto a imprensa parece ter abandonado as consequências do caso depois de semanas em novembro em que ele era praticamente o único assunto.
A última notícia que li a respeito era sobre a divulgação de um laudo que comprova, com termos técnicos, o que todo mundo mais ou menos já sabia: a moça morreu de calor. Que não se saiba mais sobre o que vai rolar com a empresa organizadora é meio triste uma vez que eu não paro de ler sobre Taylor Swift em toda parte e Ana Clara aparentemente já foi esquecida.
E sendo Taylor Swift uma artista de projeção global, nem mudar de país adiantaria para fugir dela. E este é o ponto deste texto, que não é para ser, acreditem, swifties, um ataque pessoal a sua venerada artista. É mais o quanto, não importa como o mundo tenha mudado desde a época em que eu era um adolescente desgrenhado no recreio do colégio discutindo o que havia achado de Highlander ou Splash: uma Sereia em Minha Vida no Supercine, a lógica algorítmica contemporânea parece ter apenas amplificado a falta de assunto aos mesmos cinco ou seis temas.
“É só não assistir.”
E falo da lógica algorítmica porque antes era mais fácil. Sempre com profunda dor no coração, assisti a muitos episódios do Big Brother em algumas suas primeiras edições (eu trabalhava no setor de Cultura de um jornal diário e muitas vezes precisava encarar um plantão em dia de paredão ou de indicação ou seja lá qual fosse o factoide que o programa construísse para manter a audiência conectada, e cabia a mim escrever o relato da coisa para a edição do dia seguinte). Quando me vi livre desse tipo de compromisso, parei de assistir ao BBB para nunca mais voltar, e tudo correu muito bem por uns anos. De vez em quando surgia no Facebook alguma coisa engraçada como uma campanha indignada pedindo a todos: “desligue o BBB e vá ler um livro” (spoiler: dependendo do livro, não adianta nada. Muita gente leitora de Olavo de Carvalho teria provocado menos estrago ao Brasil ficando em casa assistindo à Fazenda). Mas de modo geral, era bem possível ficar alheio.
Eu não sei o que aconteceu, como eu disse, eu sou dos que tentam evitar esse assunto, mas o fato é que nos últimos anos, só “não assistir” já não funciona mais. Não sei se isso começou com a Globo espertamente trazendo para o programa “gente famosa” (a maioria eu não sei quem são, mas sei que sou exceção), copiando o modelo de outros programas como Casa dos Artistas ou A Fazenda. Os arquitetos desse programa do demonho também foram bem-sucedidos em fazer a atração navegar na onda nociva da polarização política, levando para “a casa” personagens que poderiam ser considerados representantes dos “reaças” e dos “lacradores”, garantindo discussões e engajamentos que só beneficiaram mesmo a emissora que exibe o programa, fenômeno de audiência hoje tão presente quanto ondas de calor no verão (e talvez tão prejudicial quanto).
Como eu disse, eu fui por anos feliz à sombra de minha própria ignorância de quando começa o BBB ou quem está competindo, mas na era contemporânea das redes isso ficou impossível. Porque aparentemente todos vocês aí não sabem falar de outra coisa (e estou consciente da ironia de que este texto também está falando disso). E lá vamos ao processo laborioso de silenciar termos e nomes quando isso é possível. O melhor, não só para mim, mas para todo mundo, talvez fosse deixar as redes por completo, mas infelizmente trabalho numa profissão na qual isso não é possível. A bem da verdade, penso que hoje a maioria de nós se encontra no mesmo barco. Se você é a própria Taylor Swift talvez seja fácil não ter redes (não sei sei tem), mas se você está fazendo seus corres de assalariado fica mais difícil.
Então acho que tenho ainda à minha frente longos anos de perplexidade até que Taylor Swift ou eu (dado minha idade provecta, a hipótese mais provável) desapareçamos do universo. Até o fim das Eras.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube