Entre tantos privilégios que tive na infância, mesmo sendo de família pobre e periférica, o acesso a livros foi um dos mais marcantes. Minha mãe, incansável professora primária, nos dava livros de presente, colocava a leitura como tarefa lúdica nas férias e nos mantinha atualizados o ano inteiro com obras emprestadas nas bibliotecas públicas e escolares. Ainda tínhamos o luxo dos luxos: assinatura de jornais. Sim, mais de um: Correio do Povo, pela tradição, Folha da Tarde e depois a Folha da Manhã como complemento e “toque de modernidade”. Ler era um misto de obrigação e diversão. Aos treze anos, descobri Macunaíma em livro. Já tinha visto no cinema, mas não entendi muito bem. A leitura trouxe luz à complexidade e à ambiguidade do personagem principal, que desafia as convenções tradicionais de heroísmo e moralidade, oferecendo uma visão única e provocativa da identidade brasileira.
E foi nesta idade de transição que encontrei a definição de como eu me via: um herói sem caráter. Nem branca, nem preta, nem pobre, nem rica, nem isso, nem aquilo. Décadas depois, formada em Letras e em Jornalismo, vivo da linguagem, gosto da ideia de Luis Fernando Verissimo de ser uma espécie de gigolô das palavras. Eu as exploro. Elas são meu instrumento de trabalho. Dependo delas para sobreviver. Me policio constantemente (sim, uso próclise e não ênclise como recomenda, ou exige, a gramática). Cuido para colocar as palavras em seus devidos lugares, para manter concordância, sintaxe e beleza em harmonia. Não é fácil. Elas me traem. Eu erro, eu tropeço, meu português é ruim. Minha linguagem carrega falhas ancestrais. Falhas?
Hmmmm… talvez não. Falhas para quem, cara pálida?
Lélia Gonzalez, intelectual e ativista afro-brasileira, cunhou o termo “Pretuguês” para abordar as implicações linguísticas e sociais associadas às variantes de linguagem utilizadas pela população negra no Brasil. O conceito, introduzido por ela em meados do século XX, desafia estereótipos e critica o preconceito linguístico arraigado na sociedade.
No contexto do Pretuguês, Lélia destaca a riqueza cultural e identitária presente na forma como a população negra se expressa na fala e na escrita. Essas variantes, muitas vezes menosprezadas, são, na verdade, uma expressão autêntica da diversidade linguística brasileira, refletindo a pluralidade de influências históricas e culturais que moldaram a língua falada no país.
Muitas línguas africanas não têm os sons das línguas europeias. No caso do português, certos fonemas foram (e são) adaptados ou acrescentados pelos falantes negros, por influência das línguas originárias. Em alguns lugares do Brasil, é o caso do “R”, por exemplo, substituído pelo “L” (fralda/flalda), ou do “T” que vira “TCH” (muito/muitcho) ou da adição das vogais i e u (vocêis, douze). E por aí vai.
Porém, nos dias de hoje, o preconceito linguístico persiste como um desafio significativo. O mito da superioridade da “língua culta” muitas vezes marginaliza variantes linguísticas não normativas, impondo uma norma eurocêntrica que exclui expressões autênticas de grupos sociais marginalizados. Essa discriminação linguística não apenas reflete a desigualdade cultural, mas também contribui para a perpetuação de desigualdades sociais mais amplas.
A questão do respeito ao Pretuguês nos meios intelectualizados tem evoluído ao longo do tempo, mas ainda enfrenta desafios. Muitos intelectuais se engajam na promoção da diversidade linguística e no combate ao preconceito linguístico, reconhecendo as diferentes formas de expressão como manifestações válidas da riqueza cultural brasileira.
Exemplo que me toca profundamente é o fenômeno Emicida (Leandro Roque de Oliveira). O uso que ele faz de uma linguagem popular e influenciada pelo contexto dos morros, da periferia, é muitas vezes celebrado como uma forma autêntica de expressão cultural. Emicida é conhecido por suas letras, que abordam questões sociais, raciais e culturais, e o uso do Pretuguês é uma parte fundamental de sua identidade artística.
Confesso que, de início, ouvindo suas falas, não somente sua música, achei que ele estava forçando a barra. Uma criatura com o nível intelectual do Emicida deveria falar como um Silvio Almeida ou como um Renato Noguera, só para citar dois pretos que eu admiro. Mas, então, me informei e me enfronhei. E, gente, que maravilha entender o papel desse gênio.
Ele tem a habilidade de transmitir mensagens profundas e reflexivas através de uma linguagem autêntica e conectada à sua experiência de vida. Embora não seja unanimidade, sua aceitação e inserção nos meios intelectualizados, ou quase isso, é um sinal positivo de que a diversidade linguística está gradualmente sendo reconhecida como uma riqueza cultural a ser celebrada por todos nós. Afinal, o próprio Emicida enfatiza: “tudo que nóis tem é nóis”.
Nos últimos anos e nos últimos textos, tenho referido que estou em um processo de conscientização identitária particular. Vivi e vivo em uma sociedade branca e, por osmose ou instinto de sobrevivência, como branca me comportei. Estudei muito, trabalhei muito, me vesti de preto ou cores não chamativas, mantive o cabelo e a fala alinhados, arrumadinhos. Assim fui mais ou menos aceita, sem afrontar, sem chocar. Hoje, consigo usar meu cabelo crespo, minha roupa mais colorida, minha fala mais engajada. Ainda tenho muito para aprender e absorver, muito para entender e aceitar. Não estou sozinha. Agradeço aos emicidas, às lélias e às mentes brilhantes que me cercam e iluminam o meu dia a dia como meus pares da Odabá – Associação de Afroempreendedorismo. Gente que verdadeiramente faz, pensa, fala e muda nossa realidade e me leva a entender que realmente “tudo, tudo que nóis tem é nóis”.
Revisão: Rodrigo Bittencourt - Foto da Capa: Divulgação