Eu sou gaúcha.
Nascida no estado com o maior número de casas de terreiro do país! Você sabia disso?
Parênteses. Minha esposa – que é baiana raiz – me olha com certa piedade todas as vezes que repito isso, e fala algo do tipo: “Oxe, cês sempre tem que ser os primeiros nas coisas é!?”. Com um risinho irônico de canto de boca que diz: haja terapia para essa gauchada.
Voltando, sou gaúcha, negra, de pele preta, bunda de negona (não repita isso viu, não te autorizo) na terra onde tem o maior número de casas de terreiro do país (os outros que lutem para provar o contrário) e o que eu falo quando chego numa casa de santo para abrir um jogo pela primeira vez? – Sou católica. Kkkkkkkkkk.
Podem rir, eu também acho isso muito engraçado hoje. Mas na hora lá, nervosa, desconfortável, tinha que me impor, né? Tinha que ser algo. Tinha que mostrar que tenho fé.
E chegamos ao ponto que me interessa: fé e catolicismo.
Entre os povos antigos, as divindades eram as forças da natureza. Agradecia-se pela fertilidade da terra, dos rios, das matas. Cultuavam-se as energias dos ventos, do fogo, das águas.
Daí, vem o eurocentrismo, apoiado em uma fé que foca em um único deus e tenta varrer, com truculência e crueldade, as outras crenças da face da terra. Desenhando: eurocentrismo, em tradução livre, nada mais é do que o famoso protagonismo branco. Neste conceito, a Europa se coloca como o centro da existência de tudo e de todos, sendo responsável direta pelo que existe não só no além vida, como pelo que é permitido existir entre o céu e a terra.
Daí, vêm as grandes navegações, apoiadas em uma fé que foca em um único objetivo, expandir, roubar, dominar, matar, escravizar. Sobre as grandes navegações ou expansão marítima, a imagem que me vem à cabeça é a de um bando de homens brancos, cis, héteros sem mais o que fazer, entediados, com as burras cheias de dinheiro, que saem à caça de mais dinheiro, especiarias e metais preciosos. Aproveitam o processo para se divertir fodendo a paciência dos outros povos com blablabla de um deus acima de todos.
Daí, vem o capitalismo, apoiado em uma fé que foca em um único valor que cria fome, desespero, guerra, miséria, meritocracia, competição. O capital se define por ativos, coisas que podem trazer retornos financeiros a longo prazo. O dinheiro, representação mais visível e líquida do capital, nada mais é do que um signo de valor, é uma invenção humana para resolver o problema do escambo, da troca. O capitalismo junta toda a barbárie histórica e troca humanidade por especiarias e metais preciosos até os dias de hoje.
E eu chego numa casa de santo e digo que sou católica. Caramba, Onília!
Eu sou Onília Araújo, contadora, gaúcha, negra, de pele preta, bunda de negona, na terra onde tem o maior número de casas de terreiro do país: e EU NÃO SEI INCORPORAR, não sei ter fé nas divindades originais da minha etnografia, da minha ancestralidade. E isso faz sentido, porque combinaram de nos matar, né?
Esse é um convite para vir comigo em uma jornada de retomada da espiritualidade e da cosmovisão africana no Brasil de uma mulher preta colonizada, por enquanto.
Asé.
Foto da Capa: Tânia Rêgo / Agência Brasil