Eu, uma teimosa estudiosa e inquieta com as questões relacionadas ao corpo e seus misteriosos caminhos de expressão e relação com o mundo interno, tenho um sintoma físico recorrente, sempre que fico gripada. Invariavelmente eu perco a voz logo que os sintomas gripais começam a cessar.
Perder a voz para uma psicóloga é quase como um dentista ter que engessar a mão. Entre alguns cancelamentos de sessão e alguns esforços excessivos para seguir atendimentos e especialmente as aulas da graduação, peguei-me pensando sobre a razão desse recorrente sintoma. Para além de questões orgânicas inegáveis, a primeira ideia que me ocorreu é que eu nunca soube lidar bem com o silêncio. Desde pequena sempre fui atenta aos outros, atenta ao mundo que me rodeava, observadora, falante de perguntadeira. Sempre gostei de conversar, de ir às mesas de outras pessoas nos restaurantes e saber o que estavam comendo, como eram.
Sempre falei para tentar preencher vazios. Hoje, não por acaso, vivo de escutar para dar espaço e existência a eles.
Mas nem sempre é fácil escapar de nossos traços mais primitivos. Silêncios sempre me incomodaram, como se fosse uma tarefa imediata que se colocasse diante de mim, vencê-los com qualquer recurso possível, e os primeiros que aprendi a lançar mão foram a afetividade e o humor. Imagino que tenha sido proveitoso para familiares, colegas de escola, amigos ao longo da vida. Talvez cansativo também. Custei a entender a benção e o alívio que é poder estar em silêncio com alguém, simplesmente estando presente, fazendo nada em parceria. Depois, quando atuei como psicóloga com pacientes oncológicos, entender o valor de oferecer um silêncio respeitoso a alguém com uma dor para a qual não há palavra que em um primeiro momento conforte, é preciso e precioso. Lembrei que meu irmão mais velho, implicante em nossa infância, cantava para mim o trecho de uma música do Legião Urbana: “Fala demais por não ter nada a dizer”. Ele sempre conseguia me irritar justamente porque sempre soube que tinha muito a dizer. Ainda tenho. Mas a gente vai sofisticando a capacidade seletiva do ‘que’ e ‘para quem’ falar o que carregamos dentro de nós.
Millôr sabiamente disse: “Com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado”. Mas calar e silêncio não são sinônimos. Calar com gritos e ruídos internos sufocados não é silêncio. Silêncio é ausência de som. Ausência porque os sons estão em suspenso, ou já foram liberados, ou estão no aguardo para retornarem. Saber tolerar o silêncio é acomodar os barulhos em lugares confortáveis até que possam ser escutados.
A experiência de não conseguir falar é muito interessante. Faz pensar sobre o que de fato precisa ser dito. Em um mundo barulhento demais, onde todo mundo quer falar e ser ouvido muito mais do que escutar, calar é ouro. Aproveitar a fala do outro para acrescentar um elemento novo ao que sei ou ao que penso sobre qualquer assunto. Nesses últimos dias, foi muito difícil por vezes escolher calar quando percebia (e esse julgamento/eleição é complexo) que aquilo que pensei em falar talvez nem fosse tão imprescindível assim. Aliás, o quanto do que falamos é de fato indispensável? Interações humanas não são salas de análise, obviamente, mas todo espaço de troca servir-se-ia bem dessa ponderação.
Enquanto isso, minha voz começa a voltar, com algumas escorregadas e esganiçadas no caminho. Tento aprender a lição dela e de Millôr enquanto sigo a vida nessa loucura que é se comunicar com os outros e seguir sempre ouvindo mais para falar menos e melhor.
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