Pra falar dos oitenta anos do Caetano, vamos de Reconvexo. Essa é uma composição que ele fez pra Bethânia cantar. É uma letra cheia de referências. Tem várias matérias do tipo “entenda a letra de Reconvexo” numa rápida pesquisa no Google. Tem também o depoimento do Caetano ao poeta Eucanaã Ferraz no livro “Sobre as letras” (Companhia das Letras 2003).
Vamos primeiro às referências. Iara, personagem do folclore brasileiro – “Sou a sereia que dança, destemida Iara/água e flor da Amazônia”. Roma Negra: nome com que antigamente se chamava Salvador, também chamada de Bahia – “Eu sou a sombra da voz/da matriarca da Roma Negra”. Pode-se interpretar que a matriarca seja a mãe de Caetano. Ele é a sombra da voz da sua mãe. Caso não haja aí uma outra referência ainda mais camuflada. Henri Salvador, músico nascido na Guiana Francesa, radicado por um tempo em Copacabana, considerado um dos precursores da Bossa Nova. E as mais transparentes: Bobô, craque do Bahia, campeão brasileiro de futebol, Andy Warhol e o carnavalesco Joãosinho Trinta.
A letra opõe essas referências ao universo de um careta que não pode sacar o que há de bom nisso tudo. Como em “Vaca Profana”: “o leite mau na cara dos caretas”. Dois hinos então contra a caretice, um composto para Bethânia, outro para Gal cantar. Baiano, do Recôncavo, a região da Bahia de Todos os Santos, o compositor afirma que os caretas não conseguem ser nem recôncavo nem reconvexo.
Já, no depoimento, Caetano desvenda o primeiro verso: “Sou a chuva que lança areia do Saara/sobre os automóveis de Roma”. Quando viu os carros cobertos de pó na Itália, seus amigos disseram que era a areia do deserto que o vento trazia até ali. Revela também que o careta é meio que uma resposta ao Paulo Francis e a um tipo de gente que quer desprezar a cultura brasileira e também o universo pop e a contracultura.
O verso “Sou Gita-Gogóia” é uma referência às músicas “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho, e “Fruta Gogóia”, de domínio público, cantada pela Gal. Caetano diz que ambas têm a estrutura construída a partir de “eu sou”. Ou seja, revela na letra, de onde tirou o mote criativo para a dele.
Isso de se basear na estrutura de “Gita” e “Fruta Gogóia” eu já tinha sacado antes de saber do depoimento de Caetano quando fui estudar a letra a pedido de uma aluna do meu curso Itinerário Formação Literária. Foi o que mais curti na jogada toda. É divertido completar a expressão “eu sou”. Porque, no fundo, o que se é? Na superfície, é mais simples: sou um vendedor de seguros, sou um meia-esquerda, sou… Mas, quando se trata de definir a si mesmo, a linguagem figurada começa a aparecer para tentar dar conta do que é impossível definir. Raul, em “Gita”: “Eu sou a luz das estrelas/eu sou a cor do luar/eu sou as coisas da vida/eu sou o medo de amar…”. Ou na canção de autor desconhecido: “Eu sou uma fruta gogóia”. Caetano, em “Reconvexo”: “Sou o grito dos desesperados/Sou Gita-Gogóia”.
E você, o que colocaria depois de “eu sou”? Termino aqui com um poema de um único verso do meu livro ex, Peri, mental, editora Coolírica, 2004. Nele, me defino com um anagrama da palavra sou:
sou ous