Eu odeio o LinkedIn.
Aliás, tendo já passado por um bom número delas nos últimos 15 anos, cheguei a uma fase da vida na qual eu simplesmente abomino todas as redes sociais, e adoraria me afastar delas em definitivo, ou ao menos me desintoxicar por um ano, no mínimo, mas isso não é possível porque vivemos em um mundo no qual essas redes são ferramentas inescapáveis para quem trabalha em determinados campos – e infelizmente, em consequência de um impensado “X” marcado por mim em um formulário de inscrição para vestibular em 1993, até hoje trabalho em um deles.
E mesmo assim, com toda esta minha má vontade às redes de modo geral, guardo uma reserva incomparável de desprezo para com o LinkedIn. Eu detesto o LinkedIn sem usá-lo muito (aguento uns cinco minutos a cada vez e saio de lá correndo). Eu abomino o LinkedIn sem compreendê-lo muito bem (ao contrário das outras plataformas do gênero, como Facebook, Instagram e até o recém-chegado TikTok, em que eu nem perfil tenho, eu não sei quem criou o LinkedIn, onde é baseado, não sei o nome de nenhum responsável direto por ele).
Não me sinto culpado por isso, porque tenho certeza de que se o usasse mais e o entendesse melhor, eu provavelmente o odiaria ainda mais, até o ponto de não retorno em que a plataforma acabaria derretendo o meu cérebro ou espremendo os meus culhões (ref: Charles Bukowski, em Crônica de um Amor Louco) e eu me tornaria mais um postador feliz fazendo o jogo do algoritmo da rede e apresentando minhas sábias credenciais de liderança e networking. Em suma: toda vez que uso o LinkedIn, eu tenho medo de virar coach.
As redes e a erosão da sociedade
Jaron Lanier é um cientista de computação meio pirado que, depois de duas décadas ajudando a cimentar o “espírito visionário do Vale do Silício”, virou a chave em algum momento da primeira década deste século e se tornou um dos maiores críticos dos mais reconhecíveis aspectos da paisagem da Internet no século XXI. Segundo ele, a Wikipédia, por exemplo, é um conceito que facilita a manipulação de informações por editores que se consideram donos da verdade sob a legitimidade e a autoridade que o anonimato coletivo permite. Lanier também já criticou o compartilhamento irrestrito de trabalhos criativos que se tornou um ethos particularmente importante para a internet – para ele, e esse é um argumento com o qual eu realmente concordo, quando você compartilha gratuitamente uma produção artística que não é sua, está, sob o argumento muito louvável da “democratização do conhecimento”, na verdade achatando a classe artística como camada econômica, impedindo o estabelecimento de um patamar médio e garantindo que no futuro só herdeiros com consciência culpada consigam realmente viver de cultura.
E naquele que, arrisco dizer, é seu livro mais famoso, ele ofereceu, como diz o título da obra, Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais (2018, Intrínseca, tradução de Bruno Casotti). É um livro curtinho, 192 páginas – tenho certeza de que foi publicado no Brasil em formato de bolso porque, se fosse editado no tamanho padrão 14x21cm, provavelmente teria menos páginas ainda. E pode ser resumido em uma extensão ainda menor simplesmente citando as razões apresentadas pelo autor. Segundo Lanier, você deveria apagar qualquer perfil de rede social porque: 1) você está perdendo seu livre-arbítrio; 2) sair delas é a forma mais efetiva de resistir à insanidade contemporânea; 3) elas te transformam em um babaca; 4) elas erodem a distinção clara entre verdade e mentira; 5) elas minam o sentido de qualquer declaração; 6) elas destroem a capacidade humana de empatia; 7) elas deixam a gente infeliz; 8) elas sabotam a dignidade econômica dos indivíduos; 9) elas tornam a política impossível; e 10) elas odeiam a sua alma.
Algoritmos
Como se vê, passados sete anos do lançamento do livro, apenas pela sinopse mais básica de cada capítulo já se pode ter uma boa noção de que alguns dos argumentos apresentados por Lanier acertaram bem no alvo. O feed de qualquer rede social, por exemplo, precisa ser constantemente calibrado para não se tornar uma cascata de chorume com notícias de crimes absurdos e/ou violentos – aliás, um efeito colateral deletério das redes sociais sobre o qual a imprensa sempre parece silenciar é o despudor com que mesmo os sites de veículos que antigamente eram considerados “sérios” ou com alguma espécie de reputação, ainda que controversa, a zelar, hoje mancheteiam em suas páginas de abertura e em suas redes um infame “veja o vídeo” com notícias cuja publicação só se justifica pelo mais descarado sensacionalismo, como “homem mata motoqueiro em briga de trânsito, veja o vídeo”, “mulher é agredida em saída de boate, veja o vídeo” ou “operário é decapitado em acidente, veja o vídeo”. Provando que as redes sociais são um problema também porque seu modelo economicamente bem-sucedido pautou a transformação da própria mídia tradicional claudicante.
Se não são vídeos de crimes ou acidentes, espalham-se também os vídeos ao estilo “videocassetada”, mas ainda mais radicais, o que torna bem possível que alguém exposto demais a isso vire um babaca, mergulhe na insanidade contemporânea e perca a capacidade de empatia. Mas o que me pareceu particularmente interessante no livro – e fazendo um link aqui com o início deste texto – é o argumento que analisa questões econômicas, o oitavo. Segundo Lanier, as pessoas leigas que viram a internet se desenvolver muitas vezes parecem pensar no caminho que ela tomou como uma evolução orgânica, quando tudo o que houve em termos de criação de software, estrutura e engenharia de rede, direcionamento do financiamento econômico da rede para a receita publicitária, com o consequente aprimoramento constante dos algoritmos, nada disso evoluiu espontaneamente, mas por decisões tomadas em programação por empresas de tecnologia.
Hoje, com os grandes magnatas da tecnologia todos enfileirados na posse de Donald Trump abraçados ao Voldemort em pessoa no seu segundo mandato, é fácil esquecer que muito da ideologia inicial propagada pelo Vale do Silício em seus primeiros tempos era mais anarco-hippie do que o ancap propriamente dito. Compartilhamento irrestrito e transparente de informações de modo gratuito foi um mantra em praticamente todas as fases de evolução da rede mundial. E, reforça ele, essa concepção também nasceu de um entendimento equivocado do que seria “gratuito” e “aberto”.
“O movimento para produzir softwares gratuitos foi fundamentado em um erro bem-intencionado. Tornou-se um dogma a ideia de que, se o software não fosse gratuito, não poderia ser aberto, o que significa que ninguém além do dono poderia ver o código-fonte, então ninguém entenderia o que o software realmente fazia. Para ser justo, essa preocupação não se baseava em especulação; as empresas que vendiam softwares normalmente não revelavam o código-fonte. O motivo era que, se o código-fonte fosse revelado, programadores poderiam fazer ligeiras modificações e revendê-lo como um novo software, o que acabaria com as vendas do programador original.
Todo mundo sabia que os softwares acabariam se tornando mais importantes do que as leis, então a perspectiva de um mundo funcionando com um código oculto era obscura e sinistra. Portanto, pensou-se que a transparência, que deveria ser a base da democracia, da alfabetização e da decência, era incompatível com qualquer modelo de negócio que não fosse o gratuito. Os conceitos ‘gratuito’ e ‘aberto’ estariam ligados para sempre”, escreve Jaron Lanier em seu livro.
Merda e Black Mirror
Lanier não chega a falar textualmente, mas há apenas duas possibilidades quando um produto caro está acessível de graça: o modelo público e o econômico privado. No modelo público, o dinheiro de um caixa comum alimentado por impostos cobrados de todos é usado para que os que necessitam tenham acesso sem pagar ou pagando menos, é como o SUS funciona e é por isso que está sendo torpedeado pela direita contemporânea. No modelo econômico privado, a empresa entrega de graça o produto caro porque não é esse o verdadeiro produto, e sim você, as informações personalizadas de seus hábitos de consumo que permitem que uma empresa cobre de outras companhias interessadas em fazer propaganda de algo que você talvez esteja precisando ou possa vir a se interessar.
À medida que mais pessoas vão aderindo a um serviço ou plataforma nesse modelo, mais vai ganhando terreno um efeito que o escritor Cory Doctorow analisou em um artigo como “merdificação” (Leia aqui). Doctorow analisava a improvável sobrevivência de longo prazo do Twitter e do Facebook, mas o processo, restrito a seu esqueleto básico, funciona para qualquer uma das novas modalidades econômicas digitais: você embarca numa rede, se torna dependente das conexões que ela oferece por um ou outro motivo (nas redes realmente mais “sociais”, o “custo” de pular para outra rede implica em ter de refazer de novo todas as conexões que você montou laboriosamente na plataforma anterior, às vezes em um processo que durou anos). É aí que a plataforma, sabendo que o custo de você deixar de usá-la pode ser mais danoso do que benéfico, passa a restringir serviços, encher a coisa de propaganda, “merdificar” a experiência enquanto oferece um plano “premium” que supostamente o livraria desses incômodos – ao menos até a próxima atualização.
Num parêntese: esse fenômeno é brilhantemente retratado em uma progressão ao mesmo tempo alegórica e aterrorizante no primeiro episódio da nova temporada de Black Mirror (e um dos dois realmente bons da nova fornada), Pessoas Comuns, no qual uma jovem professora tem um tumor cerebral removido e sua consciência digitalizada e enviada para uma nuvem em um tratamento experimental que se torna sua única chance de sobreviver. À medida que a tecnologia vai se espalhando como produto comercial, o “serviço” vai piorando e sendo acrescido de problemas abusivos para fazer a professora e seu marido, trabalhadores de uma classe média não muito confortável, pagar ainda mais por um novo “plano premium”.
Do nada, a professora, cujo cérebro, lembramos, foi conectado a um servidor digital por meio de um receptor eletrônico, “sai do ar” e começa a falar anúncios relacionados a algo que se disse durante a conversa – o que, compreensivelmente, provoca problemas em seu trabalho, dado que ela começa a dizer, contra a sua vontade, propaganda de constelação familiar cristã para um aluno que acabou de confessar que a mãe está pensando em deixar o pai por violência doméstica.
Vi muita gente reclamar do que considerou um exagero esse tipo de tecnologia existir, inclusive em termos legais, mas não é esse o papel de uma obra de ficção, principalmente uma ligada a uma vertente fantástica como a ficção especulativa. Esse episódio simplesmente traduz em conceitos de vida e morte o básico da “merdificação” que todos já mais ou menos testemunham cotidianamente no uso de aplicativos, de redes sociais e serviços de streaming.
LinkedIn, o arrombado
E então chegamos ao LinkedIn, a mais arrombada de todas as redes. Cada uma delas tem seu próprio modelo de sedução a seu público potencial. As mais tradicionais e longevas, como Facebook, Twitter e todos os derivados do mesmo modelo, como BlueSky, Thread e até mesmo partes do obscuro e críptico Universo Federado, como o Mastodon, são ferramentas nas quais você expressa sua opinião, publica piadas rasas, entra em debates e discussões, xinga o próximo, etc. Com o sucesso do Instagram e de seu sucessor espiritual TikTok, o “expresse sua opinião” virou “expresse sua originalidade”, ou “expresse sua criatividade” em imagens, sejam fotos, como originalmente o Instagram, seja em curtíssimos produtos de áudio e vídeo popularizados pelo TikTok – e o sucesso dessa estética do retalho levou o próprio YouTube a adotar os formatos de “shorts”, tentando emular a experiência.
O LinkedIn promete ser uma ferramenta para “construção de networking” e “monitoramento de oportunidades”. Basicamente, é como uma entrevista de emprego online permanente com pessoas que não te chamaram. E isso provoca um efeito que eu tenho considerado alarmante nos poucos minutos que consigo passar naquela coisa sem ceder ao desespero e sair correndo. Todos nós, os trabalhadores que precisam ou já precisaram de uma colocação, já mentimos em entrevistas de emprego, exagerando qualificações que tínhamos ou mesmo inventando as que não tínhamos para provocar uma boa impressão no contratante – são mentiras bem-intencionadas, defendo até hoje. Você precisa do emprego, você mente que sabe uma coisa e depois dá um jeito de aprender aquela coisa, porque o método de seleção inventado pelos arrombados departamentos de RH do mundo inteiro não é lá muito preciso ou mesmo honesto em verificar a real capacidade de um postulante a uma vaga, e sim em identificar quem é mais esperto em se ajustar ao que se espera da entrevista de emprego. E, bem ou mal, os recrutadores de qualquer empresa também mentem para os candidatos prometendo que haverá “oportunidades de crescimento” e “bom ambiente de trabalho”, então fica elas por elas.
Mas a coisa muda com o LinkedIn, porque aquilo lá é para ser uma eterna entrevista de emprego em um mercado que não está mais interessado em empregar ninguém. E assim, espera-se que você perpetuamente interprete o papel de alguém “contratável” e com as “habilidades necessárias”. E numa realidade de pejotização acelerada e precarização galopante do trabalho, bom, você não está concorrendo mais a um emprego, você precisa fazer propaganda de você mesmo como profissional, você precisa dar mostras de que pensa e reflete sobre grandes questões futuras do mundo corporativo (como se alguém ligasse) e você precisa passar uma imagem de líder competente e com uma boa formação de base.
Em outras palavras, você precisa se fazer de coach…
Vender a si mesmo
Uma das mulheres mais iconoclastas que conheci em meus dias como profissional de redação estava esses tempos em seu perfil discutindo as futuras aplicações de Inteligência Artificial no mercado criativo, elencando possibilidades muito positivas. Um amigo meu, a quem conheci como um iconoclasta disposto a pôr fogo no parquinho em qualquer oportunidade, esses tempos publicou um textão sobre construção de carreira e identificação de pontos-chave na trajetória corporativa. Um outro amigo, professor crítico, estava esses tempos compartilhando reflexões sobre métodos de comunicação corporativos. Outro amigo fazia o elogio dos processos de IA como ferramenta do futuro no mundo empresarial, explicando por A + B. Sem falar naqueles que nem conheço, que a cada novo login por lá aparecem dando dicas de como o outro pode trabalhar melhor: jornalista de redação cagando regra sobre trabalho de assessoria, assessor apontando “fragilidades” da atual conformação das redações, etc.
Em todos esses textos, havia um tom similar, meio genérico, meio inofensivo, nada arriscado, mas assertivo o bastante nos pontos certos para parecer que a opinião era ao mesmo tempo ponderada e enfática. Em pelo menos dois dos casos, me pareceu que a pessoa que eu conheci razoavelmente bem no passado não acreditava nisso que ela está argumentando com muito bom senso e segurança agora. Pode ser que a opinião da pessoa tenha mudado, pode ser que ele ou ela, alguém que precisa trabalhar como qualquer um de nós, apenas tenha decidido embarcar na onda e pontificar as próprias certezas como forma de construir credibilidade como uma provável “liderança” – e eu em momento algum critico essa pessoa por isso.
Quando falo aqui em “virar coach”, separo, fundamentalmente, duas instâncias. Eu não me vejo, por exemplo, nem a muitos desses meus amigos e conhecidos e ex-colegas, em uma situação de afogar tanto o superego e a consciência a ponto de virar um coach desses que ganham dinheiro grande com isso. Essas são pessoas que estão, analogamente, tomando grana de pessoas vendendo coisas imateriais incomprovadas que exigem pensamento de seita, e isso está tão no limite do mau-caratismo que não acho que eu tenha conhecido na minha vida ninguém realmente capaz de enveredar por essa trilha. Falo do fato de que a maneira como se estrutura essa ferramenta online específica e extremamente necessária – já que há empresas que hoje só abrem vaga via plataforma – força seus usuários a empacotar senso comum como se fosse algum insight particularmente revelador, escrito numa linguagem neutra e inofensiva, para tentar vender a si mesmo como um bom profissional, e não chego a ter os mesmos senões éticos, porque todos os exemplos que dei aqui são de pessoas com quem eu trabalhei e, portanto, eu sei que são os bons profissionais que estão propagando ser. Acho a forma como isso precisa ser feito, contudo, um sinal do fim do mundo, no qual, no futuro, todos seremos coaches tentando enrolar uns aos outros por migalhas, enquanto umas cem pessoas no mundo inteiro terão concentrado toda a riqueza existente.
Que fique claro: quando digo textualmente neste texto que tenho medo de virar coach, não me coloco de modo algum em posição superior. Pelo contrário, estou admitindo não estar livre de, colocado em determinadas circunstâncias profissionais e financeiras, ter de fazer o mesmo.
No mundo da tecnologia digital contemporânea, não basta hoje você ser o produto, algumas delas querem que você também seja a propaganda…
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Foto da Capa: Ricardo Resende / Unsplash