O Direito de Família avança a passos bem mais lentos do que as relações sociais no Brasil. E, mesmo quando o legislador reconhece que a sociedade mudou, evoluiu, que novas relações jurídicas estão a acontecer, que são um fato consumado, e regula tais relações por meio de leis, alguns cidadãos se recusam a aceitar que outros, que vivem uma outra realidade, possam ser felizes, terem garantidos seus direitos civis, tão importantes em um mundo civilizado.
O negacionismo ao mundo real fez com que muitos casais, impedidos de se separar, vivessem eternamente infelizes, ou em relações paralelas, muitas vezes com novas famílias constituídas, mas não reconhecidas, as quais saiam prejudicadas nas partilhas, nos seus direitos sucessórios e, principalmente, nos seus direitos de serem reconhecidos como cidadãos iguais em direitos e obrigações, o que viola a dignidade da pessoa humana.
Vale fazer uma pequena retrospectiva da evolução do Direito de Família no Brasil. Até 1824 não havia nada na respectiva Constituição Federal referente ao casamento. No entanto, a imposição da religião católica apostólica romana como a religião oficial, trouxe a crença de que o casamento é indissolúvel, tem que ser para sempre “até que a morte os separe”. Em uma época que a família era extensa, hierarquizada, patriarcal, e representava a força econômica e produtiva, era importante mantê-la unida. Esse modelo familiar era a unidade produtiva que empregava capital para explorar o solo, comprar animais, implantar fazendas e constituir engenhos e foi responsável pela colonização do Brasil. Da mesma forma, para que a igreja católica não perdesse sua força, não era permitida “a separação de seus fiéis”. A relação entre Igreja Católica e Estado era estreita tanto na colônia quanto no Império, pois além de garantir a disciplina social dentro de certos limites, também era responsável por executar tarefas administrativas tais como registro de nascimentos, mortes e casamentos e manutenção dos hospitais (Santas Casas). Em contrapartida, o Estado concedia licenças para construção de novas igrejas além de nomear bispo e párocos.
O Século XIX foi marcado por acontecimentos políticos como a Independência e a Proclamação da República. Houve também o desenvolvimento acentuado da região do café. Estes fatos contribuíram para diminuir a importância da figura do patriarca. Em 1861 houve uma pequena evolução legislativa com a possibilidade de dissolução do casamente de quem não fosse católico, mas o casamento civil só veio a ser instituído em 1891.
Nas primeiras décadas do século XX, tivemos a inclusão do processo industrial no Brasil. As mulheres passaram a se dividir entre o trabalho doméstico e as atividades remuneradas. Com os primeiros passos da entrada da mulher no mercado de trabalho, as relações entre homens e mulheres tornaram-se um pouco mais igualitárias tendo como consequência a crise da autoridade familiar. Em 1916, houve um grande e rápido salto legislativo quando foi previsto que tanto a morte quanto o desquite poderiam dissolver o casamento. Este salto foi breve porque as demais 5 (cinco) Constituições posteriores, todas com viés extremamente conservador e retrógrado, determinaram novamente a indissolubilidade do casamento.
A segunda metade do século XX trouxe mudanças importantes e significativas com os movimentos feministas, hippies, estudantis e ecológicos. A entrada definitiva da mulher no mercado de trabalho, a difusão da pílula anticoncepcional para controle da natalidade, trouxeram o surgimento de novos valores para criação dos filhos e transformações nas relações sociais.
Aos poucos houve o enfraquecimento da igreja e manter casamentos baseados em relações insatisfatórias tornou-se impossível. Em 1977, a Emenda Constitucional 09/77 instituiu a separação judicial para se obter o divórcio. Por esse sistema haveria a separação judicial que poria fim a sociedade conjugal, e posteriormente o divórcio que terminaria com o vínculo matrimonial. Cumpre explicar que a sociedade conjugal diz respeito aos deveres de coabitação, fidelidade e a comunhão dos bens, e a sociedade matrimonial é algo mais ampla, compreende todos os direitos e obrigações matrimoniais.
A CF de 1988 incorporou essa previsão legislativa ao determinar a necessidade da separação judicial para que finalmente ocorresse o Divórcio e, como já mencionado, somente com a EC 66/2010 foi possível o exercício do direito ao divórcio sem a concordância da outra parte, pois essa emenda excluiu o requisito da separação prévia para a obtenção do divórcio.
O atraso do Direito de Família é tão grande que, não raro, o STF é obrigado a se manifestar para reconhecer os direitos dos integrantes das novas famílias, sejam elas formadas por pessoas solteiras, casais heterossexuais, casais homossexuais, e tantas outras formas de entidades familiares. Como exemplo podemos mencionar o caso da extinção do instituto da separação judicial, que deixou de ser prevista no ordenamento jurídico há 13 anos em razão da Emenda Constitucional 66/2010, que tratou exclusivamente do divórcio, e eliminou qualquer espécie de separação, fossem judicial ou de fato, para que alguém pudesse se divorciar. Assim, em tese, de acordo com a lei vigente, desde 2010, em razão de modificação realizada na própria Constituição Federal (CF), qualquer pessoa no Brasil, poderia se separar quando quisesse, sem a necessidade da concordância do outro cônjuge que, em boa parte das vezes, negava a separação por motivos financeiros, por vaidade ferida, ou por vingança mesmo.
Se existe uma nova lei, no caso uma emenda constitucional específica sobre a matéria e nela não consta mais um requisito, é porque ele deixou de existir, e obviamente é um requisito que não pode mais ser exigido. Mas no mundo do direito nada é tão cartesiano assim e, para muitos, até profissionais de grande gabarito, isso não ficou tão claro, e assim esses entenderam que o artigo da CF tratou do divórcio sem a necessidade de separação prévia (Art 226, parágrafo 6º da CF).
Desse modo a questão foi examinada inicialmente no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que entendeu estar afastada a exigência de prévia separação de fato ou judicial para o pedido de divórcio, que o direito ao divórcio é um direito potestativo, ou seja, um direito conferido a uma parte que a outra não pode contraditar.
Inconformado, um dos cônjuges ajuizou um Recurso Extraordinário (RE), perante o Supremo Tribunal Federal (STF), alegando que o artigo inserido na CF, a respeito do divórcio, não teria aplicabilidade imediata, que o exercício do divórcio que estaria regulamentado pelo Código Civil, que exige a separação judicial prévia.
Felizmente o STF, por maioria, entendeu que a Emenda Constitucional 66/2010, eliminou o instituto da separação judicial prévia, substituindo-a pelo divórcio.
O relator desse RE foi o ministro Luiz Fux que se manifestou pela eficácia plena e imediata da nova regra constitucional, ou seja, que ela não precisa ser regulamentada para ser efetiva. Foram votos vencidos os ministros André Mendonça, Nunes Marques e Alexandre de Moraes, que entenderam que a CF não vedou a separação, que a EC 66/2010 visou acelerar o divórcio, que ela não eliminou o instituto da separação judicial.
Nessas circunstâncias, o STF fixou a seguinte Tese de julgamento: “Após a promulgação da EC 66/2010, a separação judicial não é mais um requisito para o divórcio, nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico brasileiro. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas que já estão separadas, por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de ato jurídico perfeito”.
Acredito que essa decisão do STF ajude a várias pessoas que não suportam mais estar em um relacionamento desgastado, sem afeto, sem sintonia, ou até mesmo tóxico. As pessoas mudam e as relações também. Casamentos que foram maravilhosos muitas vezes se tornam um pesadelo irremediável. Manter um casamento falido por crenças religiosas, falso moralismo, razões financeiras, medos, culpas, entre outras infinitas razões é uma crueldade consigo e com o outro, já que lhes tira o direito de ser livre, de ser protagonista de suas histórias, e de fazer as suas escolhas. Gostei muito de uma frase do Ministro Fachin proferida nesse julgamento:
“Casar é um ato de liberdade, é uma escolha, é um ato que constitui uma comunhão de vida. Manter-se casado também há de ser um ato de liberdade, por isso que divorciar-se é um direito potestativo. (…) E esse exercício de comunhão de vida é que dá maior noção de família, que é a noção de afeto que sustenta a comunhão de vida.”