Na semana passada decidi não usar mais o Spotify.
Já há algum tempo eu vinha me incomodando com a interface poluída e com a forma bagunçada que os podcasts são organizados. Toda vez que eu abria o aplicativo, era como se meu celular gritasse comigo, tamanha a quantidade de informações que apareciam na tela.
Mas esse não foi o único motivo para eu parar de usar o Spotify. Na verdade, a questão estética da coisa foi um elemento secundário.
O que realmente me fez migrar para outras formas de ouvir músicas e podcasts foi a sensação cada vez maior que o Spotify tinha se tornado um espelho demasiadamente seletivo. Por vezes, me vinha a imagem de um corredor que ficava cada vez mais estreito – no final deste corredor, um espelho me esperava, devolvendo pra mim uma imagem com a qual tanto já estou acostumado.
Seria o algoritmo algo diferente disso, no fim da contas? Algo mais do que uma máquina de nos enclausurar cada vez mais em nós mesmos?
O problema é que nós gostamos do algoritmo, especialmente porque ele nos poupa da angústia da escolha e do contato com a diferença. O mais curioso, pelo menos para um psicanalista, é que esta mesma lógica opera também nos aplicativos de relacionamento.
Quero que o leitor tenha em mente que não acredito que sejam estes aplicativos em si o problema: eles somente reproduzem uma forma de pensar e agir que já está na cultura, dando contornos mais práticos a uma forma de escolha amorosa que parece ser a dominante.
Se há tempos vínhamos usando a imagem da “metade da laranja”, ou seja, que o parceiro seria alguém que nos completaria, o que vemos hoje em dia parece ter mais a ver com a cena de Narciso apaixonado pelo seu próprio reflexo no espelho. Não se trata da completude, mas da reprodução de si.
Têm sido bastante frequentes no consultório frases como: “Ela é ótima, é a minha versão feminina!”. Ou algo do tipo: “Eu quero alguém que compartilhe o mesmo estilo de vida que eu, que goste das mesmas coisas”.
Em tempos em que o discurso neoliberal de radicalização do indivíduo se tornou hegemônico, a lógica do algoritmo já quase não nos parece estranha, mas está naturalizada, como se o mundo realmente tivesse que operar à nossa imagem e semelhança, como se o diferente não mais nos instigasse, mas nos ameaçasse em nossa dita “zona de conforto” (odeio esta expressão).
O ponto central é que a lógica do algoritmo deixa de fora justamente aquilo que faz laço com o outros: as nossas determinações inconscientes. Nós não nos apaixonamos por características evidentes, mas por traços do outro que não são claros, que não nos são acessíveis racionalmente.
Quantas vezes nos vimos interessados em pessoas que não parecem ter nada a ver com a gente, mas mesmo assim nos chamam a atenção? Às vezes aquilo que nos “fisga” é uma entonação na voz, uma cicatriz peculiar, uma forma de olhar… e, na maior parte da vezes, é algo que talvez nunca saibamos. E tudo bem. O amor não precisa ser um enigma a ser decifrado, pode ser somente uma aventura compartilhada.
Outra questão relevante sobre aplicativos como o Tinder e o Grindr é que eles prometem uma escolha em que o desejo não estaria envolvido, em que se estaria frente a um cardápio de pessoas que fossem selecionadas sem que a nossa própria história, nossa própria mitologia pessoal, fizesse diferença.
Quando ignoramos os aspectos inconscientes de nossas escolhas amorosas, acabamos colocando a nós mesmos e aos outros como produtos de consumo – algo que extrapola o campo amoroso e chega também no trabalho, como evidenciado pela proliferação de “perfis profissionais” nas redes sociais. Dentro da perspectiva neoliberal, o valor de alguém está diretamente relacionado à sua disponibilidade de e para consumo.
Portanto, assim como para que uma música ganhe relevância no Spotify, também nós nos vemos às voltas com saber o que precisamos ser ou parecer ser para virarmos hits e estrelarmos nas paradas de sucesso do amor. De fundo, o pavor de não encontrar alguém com quem compartilhar a vida, a menos que estejamos buscando nos aplicativos algo fortuito, uma transa de uma noite… um one hit wonder, como no caso daquelas bandas que não foram além de um single (palavra curiosamente pertinente) bem conhecido.
A ironia é que justamente estes aplicativos que se propõem como um cardápio infinito de opções também vão reduzindo cada vez mais o usuário a si mesmo, deixando-o cada vez mais solitário e limitando o seu repertório ao vocabulário já conhecido.
No fim, o grande risco de terceirizamos o nosso desejo e nossos gostos ao algoritmo é o de nos pegarmos vivendo uma vida no repeat, assoviando sempre a mesma música, no mesmo ritmo, sendo escutados apenas pelo nosso próprio reflexo no espelho.