Existe uma regra no jornalismo de que suicídio não deve ser divulgado. A justificativa é de que o ato estimula potenciais suicidas a fazerem o mesmo. Porém, acredito que essa regra necessite de exceções e seja aplicada caso a caso. Recentemente, soube do suicídio de um comerciante. Como era uma figura sem grande exposição pública, o caso ficará restrito aos mais próximos e não estará nos jornais. No entanto, casos envolvendo pessoas conhecidas – que terão uma divulgação obrigatória – devem ser tratados de modo diferente. Há pouco li sobre as mortes de um artista plástico, um ator, um escritor e um filho de um político conhecido. Não sei se todas foram suicídio, mas todas foram dadas sem detalhes, mais dificultando do que esclarecendo a compreensão do fato.
Acredito que suicídio deve, sim, ser publicado em determinados casos, principalmente de pessoas famosas como o dos atores Flávio Migliaccio, Walmor Chagas e Ariclê Perez. Acredito ainda que a intenção dos suicidas era chamar a atenção para o problema deles e de muitos outros. Publicando, creio que o passo seguinte seria tratar o caso da maneira mais abrangente possível, recuperando o passado recente, as causas e as condições. No caso do Migliaccio me chamou a atenção de ele se desiludir aos 85 anos (!!??) e de ele atacar pessoas que não identifica (são próximas ou distantes dele?).
Dentre tantos casos que poderia ficar aqui citando, um exemplo se destaca.
Na noite de domingo, 13 de maio de 1984, por volta das 21h, o escritor Pedro Nava estava em seu apartamento na Glória quando o telefone tocou. Sua mulher, Nieta, atendeu e o alcançou o aparelho dizendo que uma voz masculina não identificada desejava falar com ele. Nava ouviu em silêncio o que vinha do outro lado da linha, desligou e se restringiu a comentar com a mulher que “nunca tinha ouvido nada tão obsceno”. Como ela se retirou para ir ao banheiro, Nava pegou um revólver calibre 32 e saiu pela porta dos fundos. Perambulou por cerca de alguns minutos pela redondeza, sentou-se no meio-fio próximo a uma árvore e disparou um tiro na cabeça.
Este é um resumo do capítulo final da vida de um dos maiores memorialistas do país e também o início de uma discussão profissional e ética que até hoje não está devidamente esgotada. No dia seguinte, o assunto já era pauta de destaque nas principais redações do país, em especial no Rio. O mistério inicial era o motivo que levara o escritor, aos 80 anos, a cometer tão desatinado e repentino gesto sem deixar qualquer explicação.
Logo uma versão começaria a dar novas luzes ao caso: Nava vinha sendo explorado e chantageado por um garoto de programa que se apresentava em anúncios classificados como Beto da Prado Júnior. Artur Xexéo, recentemente falecido, e José Castello – repórteres da sucursal carioca da revista IstoÉ entraram em contato com Beto pelo telefone que constava no anúncio e, para surpresa dos dois, obtiveram dele a permissão para uma entrevista. Beto recebeu os dois num minúsculo apartamento na Avenida Prado Júnior, tradicional região de prostituição masculina e feminina, vestindo apenas uma sunga vermelha e um robe transparente.
Animado com a fama instantânea, Beto já prometera entrevistas para as revistas Manchete e Veja. Parecia feliz em expor sua história que consistia, em resumo, num relacionamento de meses entre os dois (às vezes com um terceiro parceiro) com encontros inicialmente semanais e que logo ganhou um fluxo mais intenso.
A história com contornos e detalhes plausíveis, inclusive com Beto admitindo ter fotos dos dois – mas que nesse caso pretendia vendê-las caso alguma publicação se interessasse – chegou à redação trazida pelos repórteres, mas foi barrada pelo editor, Zuenir Ventura. Indignado, Xexéo defendeu a publicação. Zuenir era contra, sendo defendido por Ziraldo, que nada tinha a ver com a redação, apenas passara por lá para visitar amigos. Aliás, este foi um dos argumentos sacados por Xexéo: “Por que Ziraldo tinha direito de saber da história e os demais leitores não?”. Diga-se ainda que Ziraldo era amigo do casal Nava.
Quebrando uma das regras básicas do jornalismo de valorizar a exclusividade do furo, Zuenir ligou para a sucursal da Veja e comparou com o chefe Flávio Pinheiro o quanto havia sido apurado pelas duas revistas – e como o assunto mereceria ser ou não abordado. Este seria o primeiro dos telefonemas de uma intensa troca entre as duas redações. Pelas horas seguintes, as sucursais também passariam a receber pressões de amigos do suicida. Estes já nem estavam mais preocupados que o suicídio fosse revelado – algo até hoje tratado em silêncio pelas redações: queriam apenas evitar o motivo do suicídio.
Xexéo foi derrotado. Tudo narrado acima foi sonegado aos leitores das duas principais revistas de informação do país. Foram usadas as mais variadas desculpas e justificativas para que o que havia sido apurado de maneira clara e comprovada não tivesse divulgação. Com o tempo, dezenas de versões foram se acumulando.
Duas décadas depois, Zuenir, em seu livro de memórias, recordou o caso. E reconheceu: hoje, a imprensa atual – e talvez ele mesmo – teria publicado.