O texto a seguir surge da demanda de uma jovem e promissora arquiteta formada recentemente pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), interessada em saber sobre a estranha solução que gerou a sede do Banco Safra no Centro Histórico de Porto Alegre. Externamente, são duas fachadas diferentes em uma mesma edificação e internamente é um único imóvel. Quem olha da rua vê movimento de pessoas entrando e saindo pela porta de uma delas, enquanto a da outra permanece eternamente fechada. Importante salientar que a porta que funciona de fato destaca-se, demonstrando o acerto na solução deste caso específico.
Com o título aqui utilizado, se não falha a memória do articulista, o jornalista Percio Buys Pinto (1929-1996) escreveu no jornal Kronika, no final da década de 1970, uma matéria sobre o ferrenho antagonismo que ocorreu entre os preservacionistas do patrimônio edificado e seus opositores, aqueles que não viam valores que justificassem a inscrição de determinados imóveis na lista dos bens de interesse histórico e artístico da capital gaúcha. Caso o leitor não lembre ou não saiba, Kronika era um jornal independente que circulou na capital gaúcha, de 1977 a 2008, criado pelo jornalista Luiz Osório Teixeira (1929-2008), também conhecido como “Barão”.
No artigo de Percio Pinto, havia uma imagem ilustrativa do Edifício Previdência do Sul (1910-1913), situado na Rua da Praia (oficialmente Rua dos Andradas), no trecho entre a Rua Caldas Júnior e a Rua General Câmara (popularmente Rua da Ladeira), com a fachada voltada para norte, de frente para a Praça da Alfândega. Naquela época, este que aqui escreve era um jovem de vinte anos, cursando arquitetura e urbanismo, motivo pelo qual se interessou pelo assunto e guardou a folha do jornal por muitas décadas, perdendo-a ao emprestar para uma ex-aluna.
Naquela época, estava sendo elaborado o Primeiro Plano Diretor de Porto Alegre (1º P.D.D.U.), e nele sendo definidas as áreas especiais que viessem a garantir a preservação dos remanescentes do passado arquitetônico da cidade. Na ocasião, coube ao arquiteto Júlio Nicolau Barros de Curtis (1929-2015), professor da disciplina “Arquitetura Brasileira” da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), realizar o primeiro inventário do patrimônio local. Mais de setecentas edificações foram listadas para serem preservadas. Claro que o assunto se tornou polêmico, ganhando espaço nos jornais. Francisco Riopardense de Macedo (1921-2007) era um dos líderes dos preservacionistas e Sérgio da Costa Franco (1926-2022), naquele momento, esteve no lado oposto. Eram duas figuras destacadas no embate travado na cidade.
O plano diretor foi implementado em 1979, e com ele consolidava-se a estrutura municipal para tratar do assunto. Foram criados o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (COMPAHC), pela Lei Ordinária nº 4.139/1976, órgão consultivo com a participação da comunidade, para auxiliar o executivo na adoção de políticas relacionadas com a preservação dos bens culturais, e a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC), instituída pela Portaria nº 45, de 1981, responsável pela implementação das ações preservacionistas. As duas instituições, quando Alceu de Deus Collares (1927) foi prefeito (1986-1989), passaram da Secretaria Municipal de Educação (SMED) para a Secretaria Municipal da Cultura (SMC), na ocasião em que esta última foi criada, em 1988, sendo inicialmente liderada pelo saudoso professor Joaquim José Barcelos Felizardo (1932-1992), que hoje empresta seu nome ao Museu de Porto Alegre. Importante salientar que, atualmente, tanto o COMPAHC como a EPAHC passam por dificuldades, decorrentes dos interesses e das imposições superiores das duas últimas administrações municipais, perdendo a credibilidade que outrora tiveram.
Pouco depois, na passagem da década de 1970 para a seguinte, o Edifício Previdência do Sul e a vizinha Casa Pavão (1907), depois Farmácia Carvalho, foram adquiridos para serem demolidos e substituídos por uma nova edificação. Foi o momento em que reapareceu a figura do professor Curtis, que sensibilizou o novo proprietário a, pelo menos, manter as duas fachadas datadas do início do século XX. A ideia desagradou a muitos, especialmente pelo fato de se ter tornado uma solução constante, desde então até o fim do século. Com o tempo, o próprio Curtis também questionou este tipo de solução. Hoje, olhando para o passado, percebe-se claramente que a atitude que ele tomou, naquela circunstância, foi altamente relevante. A mediocridade da arquitetura praticada pela maioria dos profissionais daquela época permite afirmar que o prédio novo que viesse a ser construído em nada contribuiria para a melhoria da paisagem. Mantidas as fachadas e construída por detrás delas uma nova edificação, surgiu no início dos anos 80 do século passado a sede do Banco Safra, à Rua dos Andradas, 1035.
O Edifício Previdência do Sul, o que está situado do lado esquerdo de quem contempla o imóvel atual, foi projetado por Theodor Alexander Josef Wiederspahn (1878-1952) e construído pela construtora de Rudolf Ahrons (1869-1947). Foi construído como sede de uma companhia de seguros, sendo que o térreo foi ocupado por um cinema de propriedade da mesma empresa – Cine Guarani – que fechou suas portas em meados da década de 1970. Este cinema contribuiu para fazer da Rua da Praia uma espécie de “Cinelândia porto-alegrense”, pela concentração de estabelecimentos similares neste trecho da rua mais tradicional da cidade.
O prédio possuía cinco pavimentos com aberturas de formas variadas. A fachada remanescente do edifício é de dinâmica linguagem arquitetônica neobarroca, uma das preferidas do seu autor, motivo pelo qual é profusamente ornamentada. É composta por três corpos. Um central, por onde passa o eixo de simetria, e dois laterais idênticos. No térreo do corpo central encontra-se o acesso que outrora servia ao cinema, recuado, inserido em um pórtico definido por um arco monumental. Este ocupava o térreo e o nível do segundo piso. Pelos corpos laterais se acessava a companhia de seguros que ficava nos seus três pavimentos superiores.
O tratamento da fachada foi realizado pela oficina de João Vicente Friedrichs (1880-?) e as esculturas existentes foram realizadas por Wenzel Folberger (?-1915). Sobre as portas dos corpos laterais, no nível do térreo, começam os motivos decorativos com guirlandas e cartelas numa espécie de frontão curvilíneo sobre as aberturas. No arranque do arco monumental do pórtico que abriga o acesso do antigo cinema, uma carranca é posta de cada lado. Aliás, Wiederspahn usou carrancas em suas obras neobarrocas. Comparecem também no prédio que projetou logo depois para a Delegacia Fiscal do Tesouro Nacional, hoje Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), situado no lado oposto da Praça da Alfândega.
No nível do terceiro piso, entre os balcões curvilíneos existentes nos corpos laterais, aparece o conjunto escultórico relevante, que enriquece a composição da fachada. Sobre o arco monumental descrito, encontra-se a cabeça de uma figura masculina usando um capacete alado. Trata-se de Hermes (Mercúrio), que representa o seguro para as atividades comerciais. Esta figura está envolta por guirlandas guarnecidas pelas figuras de corpo inteiro de meninos e coroada por uma cartela com a data de 1913, ano da inauguração do edifício. Logo acima está a escultura mais destacada, a de uma figura feminina apoiada em uma âncora. É alusiva ao seguro da navegação; “Segurança da Navegação”, como chama Arnoldo Doberstein, estudioso do assunto (DOBERSTEIN, 1992, p. 61), um dos produtos oferecidos pela empresa seguradora. Entre o terceiro e o quarto piso, elementos decorativos secundários coroam especialmente as aberturas das sacadas laterais. O tratamento do quarto piso também é secundário. Nestes dois pisos, a intenção foi a de apenas harmonizar a decoração concentrada no terceiro piso (centro da fachada) e no coroamento.
No quinto piso, Wiederspahn recuou a fachada, gerando duas sacadas com balaustradas que dão a impressão de um grande balcão corrido curvilíneo. Assim, movimenta a fachada. Nos corpos laterais, neste nível, cria também sacadas curvilíneas (igualmente com balaustradas) que avançam, proporcionando a impressão de que duas torres se formam, elementos estes que sustentam no coroamento do edifício as cúpulas de madeira revestidas de bronze, de forma bulbosa, que completam a dinamicidade da fachada. Oportuno destacar que a unidade entre as sacadas centrais e laterais enfatiza a ideia de movimento no conjunto, composto de curvas e contracurvas.
No coroamento do corpo central, entre as cúpulas, encontra-se um frontão curvilíneo no qual está inserida uma ornamentação em relevo (a segunda mais importante da fachada), com quatro figuras humanas, representando uma família reunida, alusão aos seguros familiares oferecidos pela Previdência do Sul. Doberstein chama o conjunto de “Previsão” (Idem, p. 60). Importante destacar que, no primeiro quartel do século XX, fachadas de empresas privadas utilizavam a ornamentação para propagandear a atividade exercida na edificação. Outros exemplares notórios na cidade são os da antiga Cervejaria Bopp & Irmão (hoje Shopping Total). Mais uma vez, a atitude de Curtis, neste caso específico do Banco Safra, foi feliz, no sentido de proporcionar que se demonstre que esta foi uma prática usual naqueles tempos de fartura que antecederam a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
A outra fachada pertencente ao Banco Safra, situada do lado direito de quem os contempla, foi construída no alinhamento do lote urbano. Ali foi construída a antiga residência de Antônio Chaves Barcelos, que viria a ser posteriormente a Casa Pavão, e depois a Farmácia Carvalho, projetada no estilo Arte Nova (Art Nouveau) pelo italiano Francisco Tomatis, em 1907. A edificação possuía três pavimentos. No térreo encontram-se quatro aberturas idênticas, cuja verga lembra o arco abatido, muito usado na arquitetura de presença portuguesa na sua última fase do período colonial. Elementos decorativos fitomórficos ornamentam este nível do térreo acima das aberturas. Deduz-se que uma das portas servia de acesso aos pavimentos superiores, solução mais comum em edificações em que no térreo se explorava a atividade comercial.
A composição da edificação é simétrica, destacando-se o balcão existente no segundo piso, que é o centro da composição, e que avança em relação ao plano da fachada. Nele, três colunas, lembrando hastes de vegetais, guarnecem e cobrem a sacada deste piso e sustentam o balcão do pavimento superior. Uma faixa decorativa com motivos fitomórficos demarca a altura da sacada. Sobre as aberturas, elementos decorativos em forma de vegetais foram colocados sobre as aberturas, como foi feito no térreo e se repete no terceiro piso. Neste terceiro piso, o destaque é a abertura gêmea encontrada por detrás do balcão corrido, gerando uma grande verga de arco abatido, destacado pela decoração floral que o encima. No coroamento, o destaque é o inusitado frontão de forma circular que contém a figura zoomórfica de um pavão, que emprestou durante anos a sua figura para identificar o local. Uma platibanda cheia ladeia o frontão, também com decoração fitomórfica.
As descrições das duas belas fachadas preservadas comprovam que a luta dos preservacionistas das gerações anteriores não foi em vão. Se as gerações atuais as contemplam, é porque momentos de tensão foram enfrentados, superados (por vezes tendo que obrigatoriamente enfrentar recuos estratégicos), mas o resultado acabou sendo compensador para a cidade, seus moradores e visitantes. No momento em que este artigo está sendo concluído, vem a notícia de que a agência bancária fechou e que, no seu lugar, deverá se instalar atividade comercial voltada para a área de cosméticos. Fica a apreensão entre os que se preocupam com a preservação das duas fachadas e a forma como o novo ocupante do imóvel as tratará. O pouco cuidado de grande parte das fachadas comerciais da área central demonstra que a preocupação não é demasiada. Não há fiscalização de abusos pela municipalidade. Vale tudo. Espera-se que, o mesmo respeito com que o Banco Safra as tratou, o novo ocupante também tenha. Lamentaremos se uma cor de rosa aberrante e uma série de letreiros e banners inadequados venham a competir com as singularidades que as mesmas oferecem.
Bibliogafia:
DOBERSTEIN, Arnoldo Walter. Porto Alegre, 1900-1920: estatuária e ideologia. Porto Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, 1992.
Foto da Capa: Wikimedia Commons
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