A beleza das fachadas do Arquivo Público do RS, em Porto Alewgre, eu já admirava. São dois pavilhões que foram construídos a partir de 1908 para guardar a documentação produzida pelos poderes do estado. Um deles também serve de arrimo para o terreno onde está implantada a Assembleia Legislativa. Juntos enquadram um pátio arborizado a salvo da correria do Centro Histórico. Tem ares de claustro, há silêncio e paz ali dentro.
Esse pátio-praça não pode ser visto desde a rua, pois é preciso cruzar um terceiro edifício, do mesmo conjunto, construído em 1952, localizado à Rua Riachuelo. Um acesso mais bonito é descer uma escadaria antiga que vem da Praça da Matriz. Chegando ali, não tem como não perceber a diferença gritante no cuidado da arquitetura dos dois primeiros pavilhões com os que vieram a ser construídos depois. O terceiro prédio é sem graça e, pior, a fachada interna, voltada para o pátio, demonstra mais desprezo do que respeito pela arquitetura pré-existente.
Em 2003, o Multipalco, com olhos só para o Theatro São Pedro, levantou a quarta fachada que faltava para a formação desse pátio interno. Mais uma vez, sem prestar atenção ao tesouro que estava ali. Essa discrepância na maneira de projetar e construir edifícios públicos ao longo do século XX – perda de qualidade, para ficar bem entendido – levanta a pergunta: por que a arquitetura nessa cidade, nesse estado, perdeu a função que mais a enobrece, que é a de dignificar e qualificar o espaço público?
Até então, nunca tinha entrado nesses pavilhões. Foi numa recente visita às suas instalações, com alunos da PUCRS, que fiquei maravilhado com o que vi. O rigor e a sofisticação técnica empregada em sua construção impressionam. A autoria do projeto é atribuída, com dose de incerteza, ao arquiteto francês Maurice Gras, que projetou o Palácio Piratini. Seja quem for, o certo é que a obra é exemplar. Há todo um cuidado com sua arquitetura, seu modo de estar no terreno, de servir de arrimo para o plano alto da cidade, as escadarias externas, a escolha dos materiais e decoração das fachadas. Tudo é bem pensado e expressivo, com desenho de alta qualidade em todas as escalas.
Não demorou muito para que eu associasse essa obra a outras que admiro muito e que formam um conjunto de rara beleza no centro de Porto Alegre: o Cais do Porto e seus armazéns (aqueles que estão aguardando há décadas um aproveitamento digno de sua importância); os 4 palacetes públicos que abrigam hoje o MARGS, o Memorial do RS, a Secretaria da Fazenda e a Superintendência do Ministério da Saúde; o Farol Santander. A praça da Alfândega, tão bem restaurada pelo Projeto Monumenta sob liderança de Briane Bicca.
Quem pesquisar um pouco na Internet vai descobrir que esse conjunto de tanta qualidade arquitetônica e urbanística fazia parte de um projeto de cidade e, portanto, de governo. No caso, do longo período em que Borges de Medeiros dominou com mão de ferro os destinos da Província. Ideologia e política à parte, é inegável a preocupação que esse governo teve com a expressão simbólica de seu período de governo. Essas obras servem como monumentos, registros, marcas de um tempo que essa cidade viveu. Vê-las nos levam a pensar nesse outro tempo da mesma cidade.
Vendo desde hoje, causa-nos admiração a determinação de investir tanto dinheiro e empenho na transformação da ainda pequena cidade em uma capital com ares de cidade europeia. O projeto teve início com o aterro do Guaíba em alguns quarteirões, a construção do novo cais do porto e a praça da Alfândega para chegar ao Palácio Piratini passando pelo Arquivo Público. O trajeto previa novos eixos formados por avenidas e escadarias incluindo os prédios gêmeos do Theatro São Pedro e Tribunal de Justiça (o anterior, incendiado). A parte de ligação entre as praças da Alfândega e Matriz não foi realizada, mas o que nos deixaram certamente pode ser visto como uma das façanhas a que se refere o hino rio-grandense.
Mas o que ficou martelando na minha cabeça foi “o que aconteceu?” Onde e quando os governos perderam a capacidade de ter um projeto simbólico-funcional para a cidade? Por que a falência dos governos nesse setor? Por que o discurso de que só a iniciativa privada sabe fazer? Ela teria capacidade de fazer o que Borges de Medeiros fez no centro histórico? Teria feito os prédios da UFRGS, o parque Farroupilha, o Marinha do Brasil? Não acredito.
Não acredito porque não lhes cabe a construção de valores públicos. A representação simbólica de valores da cidadania não será capitaneada pela iniciativa privada. A ela cabe a geração de negócios, empregos, fazer girar a economia. Cabe ao poder público cuidar para que aspirações e valores humanos se transformem em monumentos, edificações simbólicas, arquitetura de qualidade. Cabe a ele se responsabilizar para que nossa cidade atenda aquilo que a economia não atende: vida espiritual, cultural, artística, esportiva, de lazer.
A que nível de decadência chegamos quando o governador propõe leiloar esse mesmo cais na Bolsa de Valores? Não é a derrocada final na ambição de um projeto coletivo de cidade? Um grupo vai projetar em privado o que considera melhor para ganhar dinheiro com a fachada da capital do Rio Grande do Sul? Entregaremos passivamente para o capital a representação de nossos valores? Tudo isso porque se alega que o Estado não tem recursos equivalentes a 15km de estrada para dar vida ao Cais Mauá?
Fotos: Acervo do Autor