Desde a invenção do dinheiro em forma de moeda, a questão do falso ou verdadeiro acompanha a humanidade. Não é um problema novo, da contemporaneidade, mas é certo, porém, que vem tomando uma proporção assustadora nos dias de hoje. Já não se falsifica apenas dinheiro, documentos ou obras de arte, falsificam-se evidências.
Na arquitetura, o percurso do verdadeiro/falso tem uma história um pouco diferente, é bem recente. Ninguém nunca teve por que duvidar do que estava construído. Uma casa era uma casa e era fácil ter certeza de que tinha sido feita de pedra, madeira ou o que fosse. Uma igreja ou ponte idem. E se pensarmos bem, deveria ter continuado assim pelo resto dos tempos. Mas não é que a questão do falso ou verdadeiro também entrou para a arquitetura?
Desde logo, é preciso diferenciar, em arquitetura, o que é falsificar ou imitar. São coisas diferentes. A reprodução de modelos faz parte do fazer arquitetônico. Na Renascença, por exemplo, copiar a arquitetura greco-romana era o que melhor se podia fazer se quiséssemos conquistar prestígio como arquitetos. Copiar é diferente de falsificar, até porque, no caso de um edifício, não há como escapar das diferenças específicas de cada empreendimento. Tem a questão do lugar e suas especificidades que, por si só, modificam a percepção do edifício. Eles jamais ficavam perfeitamente iguais. A autoria de quem copia fica impregnada no novo objeto.
O processo de imitação na arquitetura lembra o modo de fazer do artesanato, onde a reprodução de modelos segue de mão em mão até que, em uma delas, é introduzida uma mutação na forma final. A partir daí, o modelo anterior é substituído ou os dois passam a ter suas próprias histórias.
Convenhamos, que sorte a nossa que tenha sido assim por tanto tempo. Imaginem se cada edifício fosse uma obra original nunca antes desenhada, que caos viraria nossas cidades! Sinto dizer, é o que está acontecendo com a arquitetura contemporânea.
No século XIX, ao contrário, a reprodução de modelos era tão grande e tão livre que ganhou o nome de Estilo Eclético, levando o processo de cópia ao extremo. Os arquitetos não só copiavam modelos consagrados da história da arquitetura como também passaram a misturar todos eles em uma mesma obra. Nas fachadas e paredes internas eram aplicados um sem-número de elementos decorativos que faziam referência a arquiteturas consagradas da história. Como consequência da Revolução Industrial, a maioria desses elementos passou a ser produzida em fábricas a partir de moldes industriais em argamassa ou gesso. O que se via já não era esculpido in loco. A palavra “falso” foi ouvida na arquitetura pela primeira vez.
Faziam isso justamente quando a construção civil estava passando por uma revolução provocada pela indústria e pela ciência. Novos materiais – principalmente o ferro – e novas formas de utilizá-los com o desenvolvimento do cálculo estrutural abriram caminho para uma indignação crítica cada vez mais forte em relação ao Estilo Eclético. O que até então era tido como reprodução, ou cópia, passou a ser visto como falsificação histórica. Os novos edifícios já não correspondiam à dinâmica industrial da sociedade ou ao espírito da época – zeitgeist em alemão.
O livro de Adolf Loos (1908), Ornamento e Crime, não podia ser mais explícito e incisivo quanto ao caminho a ser seguido. Era preciso dar um salto para que a arquitetura ficasse pari passu com o desenvolvimento tecnológico da revolução industrial. E ele foi dado. Ganhou o nome de Arquitetura Moderna.
Não foi sua intenção, mas, setenta anos depois, as ideias dos modernistas serviram de senha para autorizar a demolição dos tantos edifícios históricos que volta e meia comento aqui nessa coluna. Não só em Porto Alegre, evidentemente, mas no mundo todo. O caso mais emblemático para nós, brasileiros, foi a demolição do Palácio Monroe em 1976, sede do Senado no Rio de Janeiro.
Enquanto no mundo todo qualquer arquitetura anterior ao modernismo era desprezada, aqui tivemos, por sorte, uma inédita construção teórica que salvou a arquitetura colonial, tida como nacional e autêntica. Graças a essa visão, salvamos um rico patrimônio que de outra forma teria sucumbido também. Falo do que se vê em Ouro Preto, Paraty e tantas outras cidades que guardam um conjunto considerável dessa arquitetura intacta ou de exemplares soltos aqui e ali ainda de pé. O Estilo Eclético, infelizmente, não teve defensores de peso antes dos anos 1980.
Passada a euforia da revolução modernista, era inevitável que sobreviesse um novo olhar sobre o Ecletismo. Afinal, temos ali a representação de um período historicamente circunscrito, com princípios bem definidos e, convenhamos, muita sabedoria e arte na construção de seus exemplares. É um estilo que prima pela profusão de referências à história da arquitetura, um estilo difícil de definir seus princípios que não sejam esses que estou trazendo aqui – pelo menos para mim. Por outro lado, curiosamente, é fácil reconhecê-lo e nominá-lo: é eclético e ponto final. Ele criou um todo homogêneo para as cidades que considero de grande valor. Os prédios da Praça da Alfândega, em Porto Alegre, por exemplo, formam um lindo conjunto urbanístico.
O Movimento Moderno criou um estilo novo – os modernistas nunca gostaram dessa palavra estilo, apostavam na originalidade de cada projeto – com princípios na Verdade, seja ela na estrutura, na função do edifício ou de seus materiais. E também à época e seus valores. Um belo estilo, mas que se vulgarizou muito mal e degringolou para, vejam só, a falsificação, assunto que vou deixar para uma próxima coluna. Ficou a ideia da originalidade e, com ela, como eu disse lá em cima, nossas cidades viraram o que são: um festival de individualidades, quando não de excentricidades. Bem de acordo com o zeitgeist…
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Foto da Capa: Praça da Alfândega, Porto Alegre - Julia Ferreira / PMPA