Os direitos das famílias simultâneas ou paralelas vêm sendo cada vez mais debatidos pelos doutrinadores, advogados e pelo judiciário brasileiro, pois a realidade fática de algumas famílias é tão forte que seria um desrespeito com a dignidade das pessoas envolvidas e seus descendentes negar a existência das mesmas e os direitos advindos dessas relações.
Famílias simultâneas, também chamadas de famílias paralelas ou uniões simultâneas, acontecem quando há coexistência de duas famílias. Por exemplo, um homem tem uma mulher com a qual é casado e tem filhos, e uma companheira com quem tem filhos. Obviamente, ele não é bígamo, pois casou apenas com uma delas, mas como negar a relevância dessa segunda família que é de conhecimento da primeira família e da sociedade em que elas vivem? É justo que apenas os direitos dos filhos sejam respeitados, em razão da vedação constitucional à discriminação entre filhos, e os das companheiras, de fato segundas mulheres, sejam negados?
Como destaquei em artigo recente publicado aqui na Sler, no dia 19 de agosto, em razão de princípios norteadores do Direito de Família, como o da dignidade e responsabilidade, a jurisprudência brasileira vem flexibilizando o princípio da monogamia. Essa relativização do princípio da monogamia é uma tendência no direito ocidental, pois não se pode condenar famílias paralelas, que existem, a ficarem fora de proteção do direito. Deste, existem algumas decisões que reconhecem os direitos dessa segunda família, mais precisamente da companheira que de fato também é mulher do cidadão.
No V Seminário da Comissão de Proteção à Pessoa Idosa, do Instituto Brasileiro de Direito de Família do Rio Grande do Sul (IBDFAM-RS), o Dr. Raul Portanova elencou as seguintes ações que podem ser ajuizadas no caso de existência de famílias simultâneas:
– Reconhecimento de união simultânea à união estável ou casamento;
– Desconstituição da união simultânea por morte ou desavença do casal;
– Alimentos para as mulheres;
– Alimentos para filhos, sendo que ele recomenda que tal direito seja postulado em ação autônoma.
O grande problema a ser enfrentado é que a legislação brasileira não reconhece a possibilidade de uma união simultânea. Pela letra fria da atual legislação brasileira, estaríamos diante de um concubinato e não de uma união simultânea, pois o Código Civil brasileiro determina que as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.
Nem mesmo o projeto de reforma do Código Civil considera essa segunda união uma família, independentemente de ali existir um casal e até mesmo filhos dos dois, e essa união ser de conhecimento público na comunidade em que habitam. A redação aprovada pela comissão foi de que “A relação não eventual entre pessoas impedidas de casar não constitui família.” O mesmo artigo esclarece que “As questões patrimoniais oriundas da relação prevista no caput serão reguladas pelas regras da proibição do enriquecimento sem causa previstas nos arts. 884 e 886.”
Voltando ao entendimento jurisprudencial, é importantíssimo destacar que o plenário do STF, ao julgar o Tema 529, na Sessão Virtual de 11.12.2020 a 18.12.2020, manifestou o seguinte entendimento:
“A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”.
Nesse julgamento, o STF justificou que “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.” Sendo de todo inviável o reconhecimento da união estável simultânea ao casamento, caso dos autos, a manutenção da sentença de improcedência da ação é medida imperativa. Não demonstração da existência de união estável entre as partes, observada a prova coletada em instrução. Precedentes do TJRS.
Como criticou o Dr. Raul Portanova, no referido seminário, de regra, não há contra a mulher que requer o reconhecimento da união estável a alegação de infidelidade. Ela não está sendo infiel, o infiel é um homem casado e que acaba por ser beneficiado.
Importantíssimo o seguinte julgamento mencionado na sua apresentação, que de certa forma excepciona o entendimento do STF, em razão das peculiaridades do caso:
“QUE FOI MANTIDA POR ESTA INSTÂNCIA NO JULGAMENTO DA AC 70084966712. EMBORA O NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO, NO ÂMBITO DO DIREITO DE FAMÍLIA, SEJA CALCADO NO PRINCÍPIO DA MONOGAMIA, À LUZ DO DISPOSTO NO ART. 1.723, § 1º, COMBINADO COM O ART. 1.521, VI, DO CC, NÃO HÁ COMO, DIANTE DA ELOQUÊNCIA DO CASO CONCRETO, IGNORAR O RELACIONAMENTO DA AUTORA/APELANTE COM O FALECIDO, O QUAL, ALIÁS, PRECEDE AO OUTRO RECONHECIDO JUDICIALMENTE. INCLUSIVE, A AUTORA PERMANECE RESIDINDO NO IMÓVEL ADQUIRIDO PELO COMPANHEIRO NO ANO DE 2000. VALE LEMBRAR QUE A RELAÇÃO DE R.M. COM J.R. INICIOU NO ANO DE 1992, ENQUANTO O RELACIONAMENTO POR ELE MANTIDO COM D. (JÁ RECONHECIDO COMO UNIÃO ESTÁVEL, COM TRÂNSITO EM JULGADO) TEVE INÍCIO SOMENTE 10 ANOS APÓS, EM 2002, QUANDO ELE AINDA VIVIA EM UNIÃO ESTÁVEL COM R.M.. ASSIM, SE ALGUM RELACIONAMENTO NÃO PODERIA SER RECONHECIDO EM RAZÃO DO PRINCÍPIO DA MONOGAMIA, CERTAMENTE DEVERIA SER O DE D., NÃO O DE R.M.. DE MAIS A MAIS, NÃO É RAZOÁVEL, NEM JUSTO QUE A RECORRENTE SEJA PREJUDICADA SOMENTE PELO FATO DE A OUTRA COMPANHEIRA, JÁ JUDICIALMENTE RECONHECIDA, TENHA TOMADO POR PRIMEIRO A INICIATIVA DE AJUIZAR AÇÃO DE RECONHECIMENTO PÓSTUMO DE UNIÃO ESTÁVEL. AINDA MAIS QUE, AO QUE TUDO INDICA, ESTA SEGUNDA TINHA CONHECIMENTO DA RELAÇÃO PARALELA DO COMPANHEIRO. ASSIM, NA EXCEPCIONALIDADE DO CASO, VAI REFORMADA A SENTENÇA, A FIM DE SER RECONHECIDA A UNIÃO ESTÁVEL DA AUTORA COM O DE CUJUS, COM O CONSEQUENTE RECONHECIMENTO DO DIREITO À MEAÇÃO SOBRE O APARTAMENTO E BOX DE ESTACIONAMENTO ADQUIRIDOS PELO FALECIDO NA CONSTÂNCIA DESSA RELAÇÃO, TENDO POR BASE O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS (ART. 1.725 DO CC), ALÉM DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO PREVISTO NO ART. 1.831 DA MESMA LEI CIVIL. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível, Nº 50019682720208211001, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em: 20-07-2023) QUESTÕES PROCESSUAIS NUMA AÇÃO EM QUE A COMPANHEIRA PEDE UNIÃO SIMULTÂNEA COM HOME”
Sob o ponto de vista processual, Dr. Raul Portanova esclareceu que, em ação em que a mulher pede o reconhecimento de uma união estável com homem casado, se ele ainda estiver vivo, a esposa precisará participar do processo. Se ele já tiver morrido, todos os herdeiros precisarão participar do processo (esposa, filhos, etc.).
Uma solução apresentada para o Dr. Raul Portanova, mas que obviamente contraria o entendimento do STF no Tema 529, seria, em uma ação em que se pede o reconhecimento da união simultânea, uma partilha que levasse em conta a “Triaçao”, pois como são três as pessoas envolvidas, não caberia a meação. Os bens seriam partilhados entre o homem, a mulher do casamento e a mulher da união estável.
Gosto de uma decisão, bem anterior ao julgamento do Tema 529, referente à Apelação Cível Nº 70081683963 – 2020, na qual foi mencionado que: “Ora, se a esposa concorda em compartilhar o marido em vida, também deve aceitar a divisão de seu patrimônio após a morte, se fazendo necessária a preservação do interesse de ambas as células familiares constituídas.”
Por enquanto, todavia, vale a apertada e conservadora decisão do STF, por 6 a 5, como se disse acima. E você, o que pensa sobre isso?
Foto da Capa: Freepik
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