“A sistemática criminalização dos pobres urbanos é uma profecia que leva ao seu próprio cumprimento e configura, de modo garantido, um futuro de guerra interminável nas ruas.”
Mike Davis
Mike Davis é professor no departamento de Creative Writing na Universidade da Califórnia, em Riverside, e integra o conselho editorial da New Left Review. Autor de vários livros, entre eles ‘No livro Planeta Favela’, Davis escreve que, em vez das torres de aço e vidro fumê em cidades sonhadas pelos arquitetos modernos a serviço da indústria da construção civil, o mundo está sendo dominado pelas favelas. Ao “genial” Le Corbusier e aos seus discípulos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, foram proporcionados total liberdade e muito dinheiro para construir a cidade indiana de Chandigar e Brasília, respectivamente. Ambas se dividiram em setores com siglas de letras e números, estritamente separadas por nível de renda familiar, tornando quase impossível uma família se mudar de um setor para outro de melhor categoria urbanística sem a elevação do nível socioeconômico.
A necessidade de trabalhadores para serviços gerais gerou em suas periferias várias cidades improvisadas e pobres. As favelas foram a inevitável outra cara dos modernos e espetaculares edifícios públicos de Brasília. Alguns severos críticos da arquitetura de vanguarda dizem que em Brasília se construiu uma cidade do século vinte e várias do século 16.
Na verdade, o planejamento urbano de Chandigar revelou a visão do mundo de Le Corbusier: autoritária, hierárquica, discriminadora e mesmo fascista, o que não foi muito diferente da visão dos arquitetos de Brasília, embora estes se apresentassem como politicamente progressistas. A preferência pela forma em detrimento da utilização prática e cômoda dos objetos parece ter se iniciado com os móveis da Bauhaus em Weimar, cujas cadeiras, por exemplo, foram desenhadas “mais para os olhos do que para as nádegas”, mas esta é outra história. ( Ou é a mesma exemplificada paroxisticamente pelas cidades citadas).
Dados demográficos pouco lembrados por alguns economistas revelam que 70 a 80% da população mundial vive nos espaços urbanos. O crescimento explosivo das favelas nas últimas décadas, principalmente nas megalópoles do Terceiro Mundo, como as cidades do México, Lagos na Nigéria, Rio, São Paulo e muitas outras cidades da África, Ásia e da América Latina, certamente é o evento geopolítico mais importante e perigoso da nossa época.
Na verdade, este não é um fenômeno marginal (marginais são chamados seus habitantes), já que os favelados logo serão a maioria das populações urbanas e, pior, fora do controle do Estado, na periferia da lei e com necessidades urgentes de formas mínimas de auto-organização. Adverte Mike Davis que, embora essa população seja composta de funcionários públicos, de ex-camponeses, de desempregados parciais ou permanentes, ela se incorpora de várias maneiras à economia global, pois muitos de seus integrantes trabalham como autônomos (inclusive no tráfico de drogas que abastece consumidores de alta renda do núcleo citadino) ou são assalariados informais, sem cobertura previdenciária, com assistência médica e judiciária deficientes e sem segurança pessoal. Eles são representados na mídia por repetidos sofismas metonímicos, como causa e consequência do desenvolvimento”, da falta de empreendedorismo”, de sobras do livre mercado, da ausência de méritos pessoais, a elogiada meritocracia” , tudo a explicar e justificar não um acidente sociológico eventual e infeliz, mas na verdade um resultado inevitável e até necessário da lógica estrutural da financeirização do capitalismo global em detrimento dos empregos nos setores produtivos. Enfim, em termos simplificados, são seres “mortos-vivos” gerados pelo sistema.
Nos espantamos e atemorizamos com os graves problemas europeus causados por milhares de refugiados de países pobres, sem nos darmos conta que os favelados de nossas cidades são refugiados dentro de sua própria comunidade. A característica que define os favelados é das ordens econômica e sociopolítica por sua não integração no espaço jurídico da cidadania que inclui a fruição de seus direitos constituídos e a qual não inclui o poder do Estado que abre mão do dever e do direito de exercer suas funções primordiais de distribuição equitativa da justiça, da segurança, da saúde e dos frutos do trabalho de toda coletividade por achar mais apropriado deixá-los viver numa zona crepuscular da sociedade.
Percebemos o poder estatal apenas pelo exercício da violência truculenta, pelas prisões, pelos assassinatos de cidadãos que não violaram as leis e sem culpa formal e que são vítimas do raciocínio boçal e primário de que “bandido bom é bandido morto”. Os pequenos, claro, porque os grandes…
O ministro Flávio Dino percebe essa situação quando diz que a “violência não nasce no morro, mas no asfalto” (sic).
E dessa maneira, como nos diz Mike Davis, a guerra nas ruas é ampla e crescente e não há força armada repressiva e homicida que possa contê-la.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras
Todos os textos da Zona Livre estão AQUI.
Foto da Capa: Freepik.