Com sua peculiar filosofia e coerência, Pepe Mujica (1935-2025), entre tantas lições, deixou-nos essa recomendação: “Não se cansem de ser bons, mesmo que ser bom não sirva para muito. Serve para não se arrepender consigo mesmo.”
A frase traduz uma certa resignação melancólica com a condição humana e a recorrente ameaça imposta pelas forças do mal. Nada que não seja também paradoxalmente humano.
O espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), em seu primeiro livro, “Meditaciones del Quijote”, de 1914, disse algo mais ou menos parecido: “Eu só eu e minha circunstância, e se não salvo a ela não me salvo eu”.
Em ambos, no entanto, a verdade subjacente. Viver é escolher. É o que nos faz optar, mesmo em situações nas quais a boiada parece impor seu tropel, a seguir um outro caminho. Quando todos os burros zurram em uníssono, empacar como uma mula manca e decidida.
Ter liberdade de escolha nem sempre é fácil, ainda assim é, em sua essência, a própria liberdade. Muitas vezes, ela só é possível aliada à resiliência e à criatividade. Seu outro nome é coragem.
A história de Borromeo, Sacerdotti e Ossicini, e de uma doença peculiar, a que deram o nome de “Síndrome K”, merece ser lembrada num impulso de bom contágio.
Em setembro de 1943, após a queda do fascismo e a rendição da Itália às Forças Aliadas, os nazistas tomaram Roma. Sem um plano de defesa da cidade e uma conduta de resistência militar, aliada à fuga de Victor Emmanuel III, a capital italiana foi rapidamente conquistada.
No final dos anos 1930, Mussolini já havia determinado várias medidas antissemitas. Com a ocupação, a perseguição aos cidadãos judeus intensificaria. No dia 16 de outubro de 1943, o gueto, situado a uma distância de apenas três quilômetros do Vaticano, foi invadido. Mais de mil pessoas foram detidas, entre homens, mulheres e crianças.
Dias antes, o chefe da polícia nazista de Roma, Herbert Kappler, recebera um telegrama de Heinrich Himmler, comandante das SS, em Berlim. “A temor do interesse da atual situação política e, concretamente, da situação da Itália, os judeus do país devem ser imediatamente eliminados. Adiar a operação suporia permitir aos judeus se esconder na casa dos italianos”, era o que dizia a mensagem. Dos 14 mil judeus que viviam na cidade, não só no gueto, 8 mil deveriam ser imediatamente deportados para os campos de concentração.
Durante o ataque, alguns judeus conseguiram se refugiar no Ospedale San Giovanni Calibita, localizado em uma ilha do rio Tibre em frente ao gueto. O hospital, fundado em 1585, é conhecido pelos romanos como Fatebenefratelli. Numa tradução bastante apropriada: Faz o bem, Irmão.
Desde a adoção das leis antissemitas, em 1938, o diretor Giovanni Borromeo, com o apoio do Padre Maurizio Bialek, havia permitido que o médico judeu Vittorio Emanuele Sacerdoti trabalhasse sob documentos falsos e que judeus fossem tratados no Fatebenefratelli. Mas, naquele dia, a situação se complicara.
O doutor Borromeu acolheu os refugiados e declarou que os novos “pacientes” haviam sido diagnosticados com uma doença contagiosa e fatal: “Il Morbo di K” – a Síndrome K. O nome foi sugerido pelo médico e ativista antifascista Adriano Ossicini. A letra K servia para distinguir os refugiados judeus de outros pacientes. O “K” era uma espécie de “homenagem” ao oficial nazista Albert Kesserling, que liderou as tropas em Roma, e ao chefe de polícia Kappler. A síndrome consistiria numa doença neurológica, cujos sintomas poderiam levar a convulsões, demência, paralisia e, finalmente, morte por asfixia. Os nazistas foram alertados a se abster de investigar o hospital e de realizar buscas por judeus nas instalações do mesmo, sob risco de contrair a doença.
Os médicos Borromeo, Sacerdoti e Ossicini contaram com a colaboração de muitas pessoas, dentro e fora do hospital. Prontuários foram elaborados especialmente para os “pacientes” judeus. Em maio de 1944, quando os nazistas voltaram a invadir o hospital, cinco judeus poloneses chegaram a ser detidos. Os demais foram instruídos a ruidosos acessos de tosse, dando a impressão de estarem muito enfermos. Mais uma vez, a manobra deu resultado.
Um mês depois, as Forças Aliadas retomaram o controle de Roma e os pacientes com “Síndrome K” foram liberados. A alta hospitalar deu-se como por um “milagre”. Uma centena de refugiados foi salva pela criativa artimanha.
Terminada a guerra, os inventores da Síndrome K não alardearam heroísmo, nem pareciam impressionados com o fato de terem se arriscado para socorrer desconhecidos. Nas palavras do doutor Adriano Ossicini: – “Bisogna sempre cercare di essere dalla parte giusta”. – “É preciso sempre tentar estar do lado certo”. É isso, Irmão, faz o bem.
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Foto da Capa: Hospital Fatebenefratelli / Reprodução