Um dos começos de frase que mais tenho ouvido no consultório nestas últimas semanas é: “Faz sentido que…”. Em geral, a frase completa é algo como: “Faz sentido meu irmão ser bolsonarista”. “Faz sentido minha chefe votar no Bolsonaro”. “Faz todo sentido que aquele meu ex-colega de faculdade tire foto fazendo sinal de arminha”.
Afora toda a ressonância militar da expressão “fazer sentido”, na qual nem vou entrar aqui nesta coluna, o que tem chamado a minha atenção é como muitos têm falado sobre esta percepção de que o fascismo do vizinho, do parente ou do amigo não é assim tão surpreendente: já havia indícios disso, pequenos atos, comportamentos ou ideias que sempre estiveram ali, mas que não tinham sido devidamente nomeados.
Um tio que sentia “pintar um clima” com a sobrinha toda vez que ia visitá-la. Um chefe que sempre sonegou impostos. Uma amiga que sempre tratou a faxineira como escrava. Uma tia que dizia o tempo todo que “bandido bom é bandido morto”. Um vizinho que sempre escrevia no grupo do condomínio o quanto o bairro é perigoso, e por isso era preciso armar os seguranças. Um conhecido que, desde pequeno, sempre foi agressivo e só conseguia resolver as desavenças de forma truculenta.
Esgotei todos os exemplos? Nem de longe.
Aliás, se tem algo que temos visto nos últimos tempos é que o repertório de crueldade, desonestidade e perversão da extrema-direita é inesgotável. Estamos todos os dias vendo não só nas telas de nossos celulares e televisões, mas à nossa frente mesmo, a maldade cotidiana da qual se vestem os fascistas, como o caso de racismo explícito e escarrado contra Seu Jorge, ocorrido no Grêmio Náutico União, clube da elite de Porto Alegre.
O acontecimento, por si próprio, já seria digno de todo o nosso escárnio, mas a situação ficou ainda mais abjeta com o vazamento do áudio do presidente de tal clube falando um rol de imbecilidades que só consegue sair da boca de alguém completamente consumido pelo ódio e pela desumanidade.
Faz sentido.
Quando pautas como a luta contra o racismo ou contra o machismo são entendidas como “coisas de esquerdistas”, nós vemos com ofuscante nitidez o fundo do poço civilizatório ao qual chegamos. Quando ainda há aqueles – e são muitos, muitos – que se autorizam a falar publicamente os maiores absurdos, é aí que nós nos defrontamos com a barbárie como método. A segregação como projeto. A violência como marca registrada.
E, claro, ainda precisamos lidar com a amarga constatação de que essa miséria moral sempre esteve aí, mas talvez nunca na história recente ela tenha sido tão autorizada e, ainda mais, incentivada pelas altas autoridades do país.
Talvez isso ajude a explicar os motivos pelos quais Bolsonaro ainda se mantenha com um percentual acima do esperado de intenção de voto: se até algum tempo achávamos que os seus desvarios autocráticos seriam suficientes para que ele perdesse eleitores, de que os seus descalabros misóginos e racistas fariam que os seus admiradores repensassem a sua escolha, agora estamos tendo que lidar com a dura percepção de que boa parte dos seus eleitores votam nele não apesar de tudo isso, mas por causa disso.
E é por isso, exatamente por isso, que me sinto à vontade de chamá-los de fascistas, com todas as letras e sem pudores.
Depois de quatro anos de governo Bolsonaro, não há mais voto ingênuo ou desavisado. Infelizmente, estamos frente à constatação de que as pessoas podem voluntariamente fazer a escolha pelo pior dos cenários.
Também por esses dias circulou o áudio vazado de uma psicóloga aqui de Porto Alegre: uma fala paranoica sobre ideologia de gênero (sic) e sobre como o voto em Lula seria “sem exagero” (isso é uma citação literal) “o fim da humanidade”, tendo em vista que “gays não se reproduzem”. São frases duras de escrever, caro leitor, mas creio que não estamos em tempos de poupar palavras.
Enfim, o ponto é que, apesar de nos parecerem posicionamentos e ideias tão cruéis, ainda assim não são inéditas ou surpreendentes.
Afinal, realmente faz sentido que um país fundado na escravidão eleja um presidente despudoradamente racista e classista. Assim com o racismo, também o machismo e a homofobia são estruturais do nosso modo de pensar e viver o mundo, ou seja, não são pontas soltas do nosso tecido social, mas são a própria malha que organiza os discursos que dão sentido para a nossa realidade. Isso significa dizer que todos nós, sem exceção, uma vez que constituídos neste mundo, também somos machistas, racistas e homofóbicos. Alguns, entretanto, sentimos vergonha disso e buscamos formas de repensar este cenário.
Os governos de esquerda produzem tanto ódio e temor justamente por serem aqueles que trazem para a cena política o sofrimento das minorias e dos pobres com o intuito de propor uma mínima reparação histórica possível, como o caso da PEC das Empregadas Domésticas, por exemplo, que buscou regularizar o vínculo empregatício destas trabalhadoras.
Para que estes projetos sigam adiante, entretanto, há um pressuposto fundamental: o de que nós somos herdeiros e reprodutores de uma lógica segregatória, violenta e abusiva. Todos nós. Talvez por aí se explique este medo infantilizado do “fantasma do comunismo”, tão alimentado pela extrema-direita: no fim, é o pavor que temos de ter os nossos privilégios questionados; mais ainda, é a constatação de que estes privilégios não são direitos divinos, mas sim fruto de uma história que sempre colocou no palco o homem branco heterossexual, o infame “cidadão de bem”. Quando os holofotes se voltam para um negro, como no caso de Seu Jorge, isso mobiliza todo o ressentimento daqueles que não suportam que o mundo não seja todo ele construído sob sua medida.
Quero dizer com isso que, como bem meus pacientes e conhecidos têm mostrado, as nossas escolhas, inclusive o nosso voto para presidente, são influenciadas não só pelo momento presente, mas por toda a nossa história, tanto individual quanto social. O ódio que alguns colocam na urna não é de agora, ele já estava ali, muitas vezes mais recatado ou matizado por um mínimo de decoro. Decoro que não existe mais.
A consolidação do bolsonarismo nos fez ver aspectos nossos que talvez preferíssemos não enxergar, nos confrontou com uma dimensão violenta e abusiva que nos é constitutiva como sociedade e como indivíduos. Questionar esta barbárie que também nos é estruturante implica ter a decência de nos reconhecermos como efeito de séculos e séculos de opressão e brutalidade.
Desejo de coração que no próximo domingo possamos criar vergonha na cara e nos responsabilizarmos de forma adulta pelas consequências de nossas escolhas.