Após nossa última conversa pelo WhatsApp, eu já em terras brasileiras, Rana decretou que não havia futuro para nós. Temos cinco horas de distância no fuso horário. Percebi que o nosso sentimento e entrega estava tirando o seu sono e mexendo com suas estruturas pelo conflito do desejo, da racionalidade, de seus valores culturais e religiosos ligado ao Islã.
Ao invés de me colocar em uma postura reativa e racional que muito amigos me aconselharam: “Olha que loucura. Deixa para lá… Imagina se entregar a um muçulmano”. Ou então: “tem algo aí, aposto que é casado ou prometido a religião dele, afinal é 2023, isto não tem sentido”. Eu resolvi mergulhar para compreender: entender a perspectiva do outro. Porque eu acredito em amor que não fala apenas para o nosso umbigo. Em amor que é entrega, que traz alegria e vida, ao invés de dor e desconforto.
Me lembro que em nosso primeiro passeio perto do hostel no 15º arrondissemet, havia um parque público lindo, cheio de flores e pessoas deitadas ao sol, nitidamente em deleite sensorial e transformando aquela praça em um quadro de sensualidade entre aromas, luminosidade e atitudes.
Rana naquele momento sem me avisar pegou minha mão de uma maneira meio brusca e rápida, e disse que me mesmo morando em Paris há oito anos, nunca havia se permitido olhar ao redor como eu olhava. E disparou: Obrigada por me ensinar a respirar. Por me ensinar a sentir.
Naquele momento, qualquer barreira minha em relação ao Rana se dissolveu e nos tornamos parte daquele cenário em Paris. Duas pessoas distantes de seus países de origem, na cidade mais visitada e artística do mundo, em um encontro de afeto aprendendo a sentir e respirar.
Em Paris, deixei meu olhar correr pelos prédios. Andava pelas ruas deslizando, parando para observar os detalhes, tornei a andar com meu guia impresso a mão, afinal a cidade tem cheiro de livro, se veem as pessoas de todas as idades carregando seus livros e jornais nas mãos. Quando entramos naquela praça eu fluí e flanei naquela vibe. Senti Rana assustado, e como sou uma ansiosa clínica reconheci nele os mesmos sintomas… e o parei o meio da praça e disse: fecha os olhos, levanta a cabeça para o céu e respira… respira fundo, até o diafragma, a vida sem respirar profunda e docemente não existe.
E assim ele fez… uma, duas, três vezes… e depois me disse: Eu não vivo Paris. Eu moro aqui, trabalho, cumpro as leis da imigração e mando dinheiro para minha família em Bangladesh. Meu pai está seriamente doente. Faz cinco anos que não retorno ao meu país. Bangladesh é uma país pobre, em desenvolvimento parecido com o Brasil. Temos uma ligação cultural com a Índia, mas a religião é muçulmana. Aqui em Paris eu vivo para trabalhar, rezar e seguir as leis.
Aquela confissão de vida me pegou de surpresa e ali criei mais empatia ainda com Rana, sua história de vida e solidão. Pois sim senti a sua solidão e seu deslocamento cultural em uma cidade que é luz e atrai para manter sua luz milhares de imigrantes que fazem funcionar os cafés, os hotéis de luxo, a vida rica e cara de Paris.
Aquele dia era um domingo, andamos mais um pouco e ele tentou me beijar. Eu ainda não sabia como reagir a todos os estímulos e aquelas atitudes intempestivas de Rana de afeto em relação a mim. Pedi que fossemos com calma, que a vida nos pede mais tempos longos e menos impulsos. Contei a ele que vivia uma rotina parecida no Brasil, até que fiquei doente após um relacionamento fracassado, e mudei meu olhar para começar a desfrutar a vida, de maneira mais emocionada, menos cheia de regras e padrões.
E saímos andando por aquela praça e o fim dela havia uma feira de livros antigos e raros com um silencio também sensorial, que nos dois respiramos fundo juntos, pois era de tirar o fôlego. Naquele domingo Rana se despediu de mim apertando forte minhas mãos e dizendo: Você iluminou a minha vida. Obrigada. Obrigada.
Senti meu coração aquecer de um jeito como nunca senti. Naquele dia fui flanar em Marais. E meu olhar havia mudado e aconteceu algo mágico: eu descongelei meu coração. Senti meu coração pulsando de novo em si. Minha emoção voltou a circular sem medo ou objeções. Me senti viva sentido as moléculas do meu corpo se movimentarem.
À noite, no seu intervalo, Rana me manda um WhatsApp: Eu não tenho palavras para lhe dizer que você me ensinou hoje a andar, a respirar, a sentir prazer.
Volto a nossa última comunicação no Brasil: Paty, Sorry. Você e eu estamos longe. Eu sinto sua falta. Me sinto confuso. Pois minha vida voltou a ser como era sem você. Não posso ir contra minha comunidade. Senão ficarei sozinho.
Eu também sinto muito Rana que você ainda não consiga ser livre e habitar a si mesmo. Porque o amor serve para nos libertar. E eu sempre irei orar e agradecer a você porque você me curou. Curou minha alma e eu voltei a ser livre para amar.
Rana. I missing you forever.
Ps. Eu e Rana nos comunicamos em francês, inglês e português. Provando que a linguagem do amor atravessa fronteiras.
Foto: selfie no Museu Rodin, diante da obra O Beijo, creditada à Camile Claudel.