O desenvolvimento do perfume, com suas melhores fragrâncias, no início muito teve a ver com um objetivo pouco comentado: esconder o cheiro indesejado de uma pessoa não dada às boas práticas de higiene. Ou seja, usa-se o cheiro bom para esconder o ruim.
O processo de elaboração da Lei das Feiras Ecológicas por parte da Prefeitura de Porto Alegre segue, de certa forma, esta mesma lógica. Quem olha “de fora” e, principalmente, escuta o discurso de alguns agentes públicos, pensa que tudo transcorreu de forma democrática, com participação das partes envolvidas e interessadas, contemplando as necessidades e demandas de quem vem há mais de três décadas construindo estes espaços de cultura e acesso ao alimento saudável. Mas na verdade a nova Lei foi uma construção individualizada e dentro de interesses outros que não o dos feirantes e pessoas vivenciam as feiras ecológicas de Porto Alegre/RS.
E esta proposta de Lei (PL 037/23) já está tramitando na Câmara de Vereadores da capital gaúcha. Prestes a ser votada em uma casa legislativa onde a situação tem esmagadora maioria.
O que está em via de ser aprovado é o fim das feiras ecológicas da cidade dentro dos princípios e objetivos sob o qual elas foram criadas. O término de uma concepção participativa, popular, democrática, onde a venda do alimento orgânico era só uma etapa (não a mais importante). Valia, e muito, o contato direto dos produtores com seus parceiros urbanos (como são chamados os consumidores). Era importante a promoção de ações que traziam à reflexão questões ambientais e sociais. O debate dentro das diferentes formas de compreender uma questão era valorizado, para se chegar a um consenso possível na hora de tomar determinada decisão.
Tudo isso (e muito mais) está a poucos passos de acabar. Se a proposta de Lei das Feiras Ecológicas da atual gestão municipal entrar em prática no futuro teremos espaços de venda de orgânicos. E só!
O cruel é que tudo parece ser arquitetado, pois:
- O Conselho de Feiras Ecológicas do Município de Porto Alegre (CFEMPOA), instância legítima do debate por ter representações de todas as feiras ecológicas da cidade, teve ignorado o trabalho de anos, feito com ampla participação de produtores, consumidores e diversas entidades. Ao invés de ouvir o Conselho, os representantes do executivo municipal preferiram conversar separadamente com grupos minoritários de feirantes, uma vez que o CFEMPOA não concordou com as proposições iniciais da prefeitura.
- Os processos de construção coletivas, que levam tempo para se consolidarem, deram espaço a procedimentos rápidos e pouco difundidos, mas com total aparência de “democrático” simplesmente por cumprir trâmites legais.
- Representantes do poder municipal, eleitos (como diz a Constituição) para exercer o “poder que emana do povo e para o povo”, fecham espaços de debates e conversas e não se mostram abertos ao diálogo (por diálogo entenda-se saber falar, mas também ouvir e considerar a posição do outro).
- Em um dia o secretário municipal da pasta vinculada às feiras ecológicas (SMGOV – Secretaria Municipal de Governança e Articulação Política) participa de reunião do CFEMPOA dizendo que “concordamos com 95% das propostas apresentadas pelo Conselho”. Pede 15 dias para fazer ajustes e apresentar nova redação da Lei. E no dia seguinte à reunião apresenta a Resolução 02/2023 da SMGOV simplesmente acabando com mais de 30 anos da forma de funcionamento das feiras ecológicas.
- Após incessantes tentativas frustradas de diálogo com a SMGOV, os participantes do CFEMPOA resolvem fazer reunião direto com o prefeito da cidade. Na ocasião apresentam novamente seu acumulado de propostas, construído ao longo de anos de diálogos, reuniões, seminários públicos, entre outros. Saem com a promessa de avaliação, retorno e participação nas próximas etapas da construção da lei. Termina com o PL 037/23 apresentado na Câmara de Vereadores de forma a ter rápida tramitação.
Na natureza as raízes das árvores crescem devagar, mas se mostram incrivelmente capazes de atravessar os solos mais difíceis para conseguir os nutrientes necessários para seus ramos e folhas. E este exemplo nos ensina a resistir mesmo em situações extremas e com recursos limitados. Até porque são muitos aqueles que preferem o cheiro maravilhoso das flores no campo ao aroma artificial de frascos com essências manipuladas.
Principais retrocessos do PL 037/23
- Estabelece uma estrutura vertical de comando nas feiras ecológicas, com domínio absoluto do poder público municipal no que se refere ao poder decisório. Isso contraria uma forma de gestão participativa e democrática que acontece há mais de 30 anos, onde todos os atores e atrizes são escutados na hora de decidir. Também fere a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre (além das Constituições Federal e Estadual), onde no seu artigo 6º garante a participação popular nas decisões.
- Não faz referência à valorização, proteção e aprofundamento da experiência democrática de autonomia e autogestão das feiras ecológicas, desrespeitando um legado de mais de três décadas de história ligada a agroecologia e ao pensamento ecológico gaúcho, tornando-se referência nacional e internacional neste campo. Esta invisibilização esvazia de sentido o verdadeiro espírito que anima e dá vida às feiras ecológicas, enquanto espaços geradores de cultura, qualidade de vida, soberania e segurança alimentar.
- Estabelece como competência do Executivo Municipal a definição de normas de funcionamento dentro dos critérios de “conveniência e oportunidade”, apenas “ouvindo” as comissões das respectivas feiras ou o próprio Conselho de Feiras Ecológicas. Ou seja, transforma estas estruturas históricas de auto-organização em apêndices sem poder decisório, criatividade, poder de inovação e o caráter de democracia profunda que tem caracterizado as feitas ecológicas como espaços identitários e de relevante interesse cultural da cidade de Porto Alegre e do Estado do Rio Grande do Sul (conforme consta na Lei Estadual nº 15.296/2019).
- O PL 037/23 tem um caráter jurídico vago, de conceitos abertos e sem precisão conceitual. Com isso praticamente toda a regulamentação será feita posteriormente através de Resoluções elaboradas pela própria SMGOV (Secretaria Municipal de Governança e Articulação Política). Estas Resoluções não passam por discussões públicas nem mesmo pela Câmara de Vereadores, podendo assim o estrago ser muito maior.
- Acaba com as características populares e democráticas quanto a experiência das feiras ecológicas, suas bandeiras históricas e forma de ser.
Elson Schroeder é jornalista da Associação Agroecológica, ativista e integrante do Spin Orgânicos do POA Inquieta
Foto da Capa: Pedro Piegas / PMPA