Trago estas linhas com aquela sensação prévia a um ato de ousadia ou de petulância desmedida. É um tal de frio na barriga e a escuta no meu íntimo daquela consideração última, aquela que surge na antessala da ação mal calculada: acho que hoje eu apanho… É porque quero me atrever a compartilhar minha breve releitura, não tão contente, de uma produção de “uma” cânone.
Felicidade clandestina: linhas que me iniciaram como leitora de Clarice Lispector. A adolescente que fui, foi rápida a identificação e enamoramento com a personagem de uma leitora decidida, porém pobre. Uma menina cujas privações materiais a impediam de acessar os livros tão desejados. Não bastasse, a filha do livreiro também sempre me pareceu a antagonista perfeita: má e plenamente consciente de sua superioridade material.
Deixo o spoiler completo para outro momento, já que o conto é vastamente conhecido e, se não o for, sua leitura ainda vale. E sempre, sempre gostei da última frase depois da conclusão do torturante périplo da protagonista. Nela, Clarice transforma livros em amantes. Genial!
Esse reencontro com a Felicidade clandestina bem poderia terminar assim. Acontece que, recentemente, me pus a reler com olhos e ouvidos de quem, cada vez mais, trabalha com diversidades. Depois dessa minha repaginada pessoal e profissional, eis que me encontro quase invertida, um tanto identificada – ora vejam! – com a filha do dono da livraria. Como é isso possível?
Arrisco perder “amigos” ao transcrever algumas frases que me deixaram um tanto consternada e me conduziram a essa nova identificação: “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos”.
Com exceção do “sardenta”, devo ser capaz de dar um visto em cada um desses itens que apresentam a pequena vilã.
O livro fetiche de nossa querida protagonista também mereceria considerações, dado o agora reconhecido racismo do autor em questão, mas, por ora, deixemos isso pra lá. O google está servindo essa informação que aqui me abstenho de ofertar. Afinal, se o ativismo não descansa pode terminar caindo no vazio.
Frase complicada número dois: “…enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso”. Depois dessa oração, eu apenas entendo o porquê de resíduos de gordofobia em tantas de nós mulheres.
E, por fim, a terceira e última que me ressoou diferente: “Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife”. O conto é bastante autobiográfico segundo confirmou a irmã de Clarice. Contudo, a exaltação do “menina loura” me fez recordar uma reflexão que tive com minha enteada – outra menina loura – sobre o fenótipo das vilãs dos filmes da Disney. Elas raramente são louras, assim como as mocinhas e princesas geralmente são loirinhas.
Enfim, trago essa fotografia não tão linda dessa grande escritora que sigo admirando. Contudo, acredito que grandes autores suportam releituras. Quanto a felicidade? Acho que ela está ainda mais clandestina.
Foto da capa: Reprodução | Cabelo Duro Produções
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