Minha avó materna costumava contar que meu bisavô, que era um bom criminalista, nos anos 30 do século passado, foi chamado por um senhor que havia acabado de assassinar a mulher, em razão da legítima defesa da honra. Na ocasião, meu bisavô recomendou que ele mandasse imediatamente a maior coroa de flores com a frase: “Perdoe-me, querida”. O marido que havia lavado a sua honra com sangue, ganhou uma pequena condenação, e seguiu vivendo normalmente. Felizmente jamais voltou a cometer ilícito.
Por muitos anos a condição de poder do homem bem como a autoridade que exerciam na família por serem os provedores e chefe de família, reforçaram a cultura do patriarcado onde a mulher era considerada como “objeto de sua propriedade” tendo como deveres procriar, desempenhar tarefas domésticas e criar filhos.
Em um cenário tão nitidamente desigual entre os gêneros, a violência doméstica, seja de forma psicológica ou física, se desenvolvia com frequência, mas era encarada com naturalidade nas relações conjugais e familiares já que a ideia de “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” predominava.
Por estas e outras condições as mulheres ficaram por um longo tempo dependentes economicamente de seus maridos/ cônjuges/ companheiros/parceiros fortalecendo o poder dos homens e aumentando a impotência das mulheres na sociedade.
O crime passional sempre esteve presente em nossa sociedade independente de classe social. Traição, separação e “desobediência” sempre foram agentes provocadores de ódio, influenciados por uma sociedade patriarcal, na qual “lavar a honra” manteria a reputação dos homens intacta.
Com os movimentos feministas da década de 1970, a violência de gênero ganhou notoriedade e o Estado passou a ser responsável por propor ações e medidas de proteção para punir os agressores. Todavia, somente em 2006 a Lei Maria da Penha(Lei 11.340,2006) foi sancionada e estabeleceu marcos legais para punição de crimes de gênero.
A partir da Lei Maria da Penha, as mulheres passaram a denunciar os diversos tipos de violência (agressões físicas, verbais e psicológicas) na esperança de seus agressores serem punidos e elas terem suas vidas reconstruídas.
Ainda, em decorrência da Lei Maria da Penha, a Lei 13.104, datada de 9 de março de 2015, implantou no código penal o crime de feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Essa lei fixou como pena pelo crime de feminicídio a reclusão de 12 a 30 anos.
Pois bem, passadas décadas e apesar das leis terem sido criadas para proteção da mulher e punição de seus agressores, o Brasil não mudou. Inúmeras mulheres continuam morrendo por motivos relacionados à sua condição de mulher. Em 2021, uma mulher foi morta a cada 6 horas em virtude de feminicídio, que é o homicídio cometido contra a mulher por motivo relacionado à condição de sexo feminino. Segundo a legislação penal, considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve (i) violência doméstica e familiar ou (ii) menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Segundo divulgado, em abril de 2023, pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de violência contra a mulher, em que pese muitas ações públicas tenham sido tomadas e que em 2015 o Código Penal tenha sido alterado para incluir o feminicídio no rol dos Crimes Hediondos.
Em pesquisa recente realizada pelo “Monitor da Violência”, no ano passado, foram 1,4 mil mortes motivadas pelo gênero. O machismo, a prepotência, a covardia e a barbárie continuam na cabeça dos brasileiros, e também das brasileiras, pois os autores desses crimes costumam dar sinal de desrespeito, ao ofenderem oralmente as mulheres e até mesmo fisicamente. Isso não pode ser aceito nem pelas vítimas, seus familiares, amigos, vizinhos pela sociedade, enfim. Quem sofrer ou assistir alguma violência doméstica ou familiar, menosprezo ou discriminação contra as mulheres, denuncie, por favor, não deixem essas covardias monstruosas impunes.
De acordo com o Código Penal atual, a pena para o feminicídio é de reclusão, de doze a trinta anos, e será aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado (i) durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; (ii) contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos, com deficiência ou com doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; (iii) na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; e (iv) em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas.
O ministro Nelfi Cordeiro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar o HC 440.945, declarou que:
“É devida a incidência da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar, possuindo, portanto, natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente. Assim, não há se falar em ocorrência de bis in idem no reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto a primeira tem natureza subjetiva e a segunda, objetiva”.
Nas últimas semanas houve um importante julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o da ADPF 779, ajuizada por um partido contra as decisões de Tribunais de Justiça de todo o país que absolveram feminicidas em razão da legítima defesa da honra, e contra a decisão da Primeira Turma do STF “que teria validado esses veredictos populares”.
Para quem é leigo, convém explicar que “legítima defesa” é uma causa que exclui a ilicitude, que afasta a aplicação da lei penal, e que considera-se “em legítima defesa” quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Felizmente, por unanimidade, o Plenário do STF declarou inconstitucional o uso da tese da legítima defesa da honra tanto em crimes de feminicídio quanto em agressões contra mulheres, em razão do gênero. De acordo com o STF, qualquer agressão contra a mulher, em razão de seu gênero, ofende os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero, que são princípios constitucionais.
Segundo a ministra Cármen Lúcia, “a sociedade ainda hoje é machista, sexista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser donas de suas vidas”.
A ministra Rosa Weber não deixou por menos, e se pronunciou no sentido de que “não há espaço para a restauração dos costumes medievais e desumanos do passado pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso em defesa da ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina pela qual se legitima a eliminação de mulheres”.
Obviamente que esse julgamento terá um efeito em cascata, pois obrigará os tribunais e os juízes a seguirem essa linha jurídica. Mas isso não resolverá todo o problema, somente com uma conscientização de toda a sociedade, do menininho, do papai, do irmão, do vovô etc., também das mulheres, que se submetem ou apoiam o patriarcado, teremos efetivamente uma sociedade menos injusta. O mundo está tão triste, tão injusto, que falar em “mais justa” seria quase uma injustiça contra os bilhões de seres que vivem em uma situação muito desigual, suportando todo tipo de violência, miséria e até mesmo guerras. Chega de machista psicopata jogando sua agressividade em cima das mulheres. Que vão se educar, se tratar, ou sintam o peso da lei.
Foto da Capa: Tânia do Rêgo / Agência Brasil