Uma das minhas lembranças de infância mais vívidas é a do meu pai parando na estrada e oferecendo carona a desconhecidos, pessoas muito humildes, miseráveis, muitas vezes andarilhos, à despeito da cara feia dos três filhos (depois nasceria o quarto) que precisariam se espremer no banco de trás. Dela aprendi a oferecer ajuda, escutar histórias, a me interessar e aprender com elas e, principalmente, descobri o mundo da desigualdade e injustiça social. Essa é uma experiência que me explica a fundação da ativista que sou, quando me pergunto de onde veio a indignação que sinto pelas injustiças que sofrem as pessoas em geral, mas em especial e pelas quais eu atuo em particular, as idosas, em situação de rua e mulheres.
Essa reflexão veio porque tenho escutado a série de treze entrevistas do podcast “Escute as Mais Velhas”, apresentado pela Sueli Carneiro e Neca Setúbal, em que apresentam a trajetória das mais importantes mulheres representantes do feminismo e direitos humanos na história do Brasil atual.
Elas apresentam trajetórias diversas e ricas como Benedita da Silva, Luiza Trajano, Leci Brandão, Conceição Evaristo, Heloisa Teixeira, Jacqueline Pitanguy, Helena Theodoro, Schuma Schumaher, que trouxeram contribuições, em especial para os direitos das mulheres e a ampliação dos nossos espaços no país. Conhecê-las, porque muitas ainda estão invisibilizadas pela história oficial, reconhecê-las e poder honrá-las ainda em vida é um privilégio. Para este podcast, foi feita a última entrevista da Heloísa Teixeira, uma semana antes de sua morte. Maravilhosa, ainda cheia de combate e vitalidade na voz.
Escutando as histórias delas, pude constatar como histórias são poderosas. Por meio delas, a gente vai reconhecendo a passagem das nossas e também entendendo que muito do que nos acontece não é uma experiência individual, mas coletiva e social, mesmo elas sendo de gerações anteriores, diferentes etnias, classes. Com isso, a gente vai conseguindo digerir as nossas próprias experiências de vida e entender que muito do que nos acontece não é por nossa culpa, mas porque existe um sistema que nos quer colocar em modelos, padrões, caixinhas. Qualquer desvio é um perigo e, portanto, pra fazer a gente voltar a ser “como éramos antes”, é importante nos incutir vergonha e culpa.
Por outro lado, escutando as mais velhas, chamou minha atenção o quanto várias delas, apesar de muito bem resolvidas com a questão das suas relações com o mundo a partir de um olhar feminista, mantinham um olhar idadista sobre si mesmas e o mundo.
A cada entrevista, é perguntado sobre como a velhice vem sendo encarada, e várias trazem o testemunho da dificuldade de lidar com o envelhecer (que realmente oferece desafios) e dificuldade de enxergar benefícios no envelhecimento ou citam ainda sentir a “juventude”, “jovialidade” para se manter ativa na velhice.
Confesso que, de início, me surpreendi e me decepcionei: como que mulheres tão “desconstruídas” e com anos de trabalho contra injustiças demonstravam um preconceito tão básico com relação à idade? Contra elas próprias?
Então compreendi que, apesar de tão bem “trabalhadas” no que se referia ao feminismo, a respeito do idadismo, um preconceito do qual ninguém escapa e que para mulheres é ainda mais violento, não tinham a mesma profundidade de conhecimento e, por isso, estava sendo injusta com elas.
Afinal, o que é o tal Idadismo?
Idadismo, também conhecido como etarismo ou ageísmo, é o preconceito e a discriminação baseados na idade.
O idadismo atinge pessoas de todas as idades: as crianças, quando desqualificamos seus conhecimentos; os adolescentes, quando diminuímos sua maturidade; os jovens, quando desconfiamos de sua experiência e conhecimento. Mas o idadismo aumenta com o passar do tempo e vai aumentando com o envelhecimento. Mundialmente, uma a cada duas pessoas é considerada idadista em relação à pessoa idosa.
O idadismo é mais uma camada que se sobrepõe a outras camadas de preconceito que as pessoas carregam ao longo da vida. Assim, quem integra os grupos minorizados irá não só carregar esses pesos durante sua existência como, ao envelhecer, terá mais o etarismo como “bagagem extra” para carregar. Há que considerar que não vivemos em “caixinhas”, existem as interseccionalidades, ou seja, a combinação de fatores, como raça, classe, gênero e idade na vida cotidiana, por exemplo.
Nesse quesito, para a mulher, que já é oprimida pelo sistema machista e patriarcal, o idadismo vem para reforçá-lo e invisibilizá-la ainda mais. Por estudo, conforme o último Relatório Mundial sobre o Idadismo, publicado pela OMS em 2022, o idadismo faz com que as mulheres mais velhas sofram duplo risco por causa das regras patriarcais e da preocupação com a juventude, o que as faz perder o status mais rapidamente comparado aos homens. Assim, homens mais velhos são julgados de maneira diferente, mais positiva, do que mulheres. Mulheres mais velhas sofrem mais pressões para esconder os sinais de envelhecimento e são alvo de uma indústria da beleza e antienvelhecimento cada vez maior (hoje chamada de autocuidado).
Em 2020 e 2021, participei como articuladora da produção das edições do 1º Glossário Coletivo de Enfrentamento ao Idadismo, em parceria com mais de 40 instituições, que fez parte da Campanha “Lugar da Pessoa Idosa É Onde Ela Quiser”, idealizada pela Longevida Consultoria .
No trabalho para o Glossário, em rodas de conversas realizadas nas cinco regiões do Brasil, colhemos palavras, frases e depoimentos idadistas. Posso afirmar, que cerca de 95% dessas contribuições vieram de mulheres. Veja algumas colaborações que recebemos no Glossário:
· Bonitona para a sua idade – Normalmente significa surpresa pela boa aparência da mulher idosa.
· Conservada – Quando a aparência da pessoa idosa é mais jovem do que sua idade cronológica.
· É muito feio velha de cabelo grande / Ela está muito velha para usar cabelos compridos – Segundo o preconceito, o cabelo curto seria o ideal para as pessoas idosas. Muitos consideram como uma marca da sensualidade feminina, os cabelos longos. A ideia preconceituosa por trás desta afirmação é que, agora que a pessoa com mais de 60 anos está com a pele enrugada, perdeu a capacidade de ser uma pessoa atraente.
· É muito colorido para a sua idade – Associa cores vivas e alegres às pessoas jovens, como se os idosos só pudessem usar cores tristes, sombrias e apáticas. Isto sugere o imaginário das pessoas que compreendem, de forma equivocada, a velhice e as pessoas idosas.
· É normal, é da idade – Justifica os problemas de saúde ou de comportamento como se fossem típicos do envelhecimento.
· Toda mulher, depois dos 50 anos, se torna loira – Expressa a ideia de que toda mulher que clareia os cabelos é para esconder os cabelos brancos, como se ela não pudesse escolher a cor que desejar para seus cabelos em qualquer idade.
· Depoimento de Ekatriny Antoine Guerle, 61 anos, São Caetano do Sul (SP): “Revi um grupo de pessoas que não encontrava desde a minha juventude. Depois do encontro, uma amiga me contou que ficou indignada com os comentários que ouviu sobre mim. Disseram que eu estava irreconhecível de ‘tão acabada’. Fiquei desapontada, porque imaginei que as pessoas queriam se reencontrar e confraternizar e não medir quais mulheres estavam mais ou menos ‘acabadas’. Tenho tantos planos para o futuro… Será que as pessoas imaginam que, nesta minha idade, algo acabou em mim? Ali, definitivamente não era o meu lugar.”
Exposto de uma maneira nem sempre explícita, mas sempre agressiva e violenta, o idadismo causa danos na nossa saúde se tivermos ele internalizado em nós, inconscientemente, acreditando que a velhice e o envelhecimento podem nos causar mal. Por causa dele, podemos encurtar a vida em até 7,5 anos. O que fazer?
A descoberta do envelhecimento foi assustadora pra mim: ao se manifestarem uma série de doenças na minha mãe, entre elas um câncer, me dei conta de que ela era finita, estava idosa, e que eu estava envelhecendo e morreria um dia. Aí “a porca entortou o rabo”. Isso começou lá em 2009. Muita água passou debaixo da ponte depois disso.
Cada pessoa é uma pessoa e não acredito em receitas prontas. O meu jeito de lidar foi com terapia, buscar conhecimento, conversar com especialistas, criar um podcast, entrar para movimentos, ler muitos livros, pesquisas, fazer uma pós, cursos, seminários, o que acabou por traçar uma nova trajetória de vida. Cá estou eu.
Fica a minha sugestão de que, quando você encontrar algo que te instigue, desconforte, inquiete, siga no caminho para saber e sentir mais. Acredito que a curiosidade e o medo são um bom termômetro para nos levar além. Aptos, se dispostos, a aprender com a criança, o jovem ou o ancião, o analfabeto ou o “doutor”, como fazíamos com os caroneiros que meu pai acolhia no carro quando éramos crianças.
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Foto da Capa: Gerada por IA.