Já se passaram dez anos desde que estive no campo de concentração de Auschwitz. Na época, os amigos me perguntaram por que eu estava indo para lá.
“Eu tenho uma pergunta a fazer”, esta era a minha resposta.
Eu havia me preparado para ir lá mesmo? Não tinha jeito, eu sabia que a pergunta tinha de ser feita. E não importava nada do que me dissessem, pois a viagem pelo leste europeu aconteceria.
Talvez naquela época eu tenha empreendido essa viagem para sentir alguma coisa. Afinal de contas, a vida nunca tinha sido fácil para mim. O fato de estar em Auschwitz seria uma forma de dizer “eu também sobrevivi” aos desafios da vida. Essa disposição de pensar me levou diretamente até lá, afinal eu tinha 32 anos de idade e não estava na Europa a passeio. Minha missão era realizar uma pesquisa sobre filosofia judaica na Universidade de Estrasburgo, na França. Tudo que me remetesse ao judaísmo na Europa exercia uma atração diferente.
Eu lembro bem durante a análise no Brasil: “Você sobreviveu”, me disse a minha analista. Um sobrevivente em certas condições muito particulares. Alguns diriam hoje, com uma certa tolice cada vez mais crescente… Alguém que usou a resiliência a seu favor. Não via muita inteligência em sobreviver. Talvez inteligência em me manter vivo apesar do passar dos anos. Inteligência e também sorte por encontrar os locais mais favorecidos tamanha a dificuldade da circunstância danosa.
O jardim da casa de minha infância tinha azaleias rosas. Lá eu me dispunha a brincar com as borboletas, as formigas, as minhocas, os caracóis. Escutava o som dos pássaros na primavera, feliz com o brando calor que invadia tudo ao meu redor. Eu sabia que não veria nunca mais meus pais juntos… E sabia que, de certa forma, fui poupado de uma carnificina muito maior entre gritos e lágrimas de dois adultos brutais.
Entretanto, não era isso que eu pensava quando peguei o velho trem de madeira que ia para Auschwitz. Eu só escutava o ranger do freio sem lubrificação e o impulso que me levava para frente com esse acionamento brusco. Eu via as montanhas ao fundo, em direção ao sul, de quem sai de Cracóvia. As pessoas saíam uma a uma do trem. E quando me dei conta, só estava eu no vagão. Lá cheguei após quase uma hora de viagem. Caminhava-se pouco para conhecer o campo. Ele já estava ali, bem estampado na minha frente.
“Arbeit macht frei”
Ali, estampado na minha frente. Havia gente demais, principalmente adolescentes israelenses que vinham em excursão. Todos silenciosos, olhando e olhando com seus jovens olhos, passando pelos pavilhões daquele antro. Talvez todos nós ali estivéssemos por algo da nossa história. Outros só pelo olhar curioso de ver uma fábrica daquelas… resultado de retalhos e mais retalhos de coisas. E não por nada a coisa chegou até mim, em meio aos retalhos de roupas e sapatos. A coisa fria em uma das câmaras. Fria até gelar todos os meus ossos, prestes a me tragar para dentro, a destruir minha câmera fotográfica, sugar minha alma e deixar meu corpo inerte, totalmente paralisado.
Sim, foi aí o ponto sem retorno. Um corredor escuro com parca luz amarelenta. Eu os vi em fila, sem roupas e sem cabelo, andando como fantasmas indo para lugar nenhum. Nunca havia sentido tanto frio na minha vida. Estava morrendo, o ar frio passava pelas frestas da roupa, entrava no sangue e a tensão estremecia o meu corpo. No final, todos estavam mortos.
Saí do pavilhão. Nem todos estavam abertos. A sala dos experimentos de Josef Mengele estava fechada. Não sei quanto tempo fiquei ali. Assim como peguei o trem para ir, estava à minha frente um outro pronto para meu retorno à Cracóvia. Não era tão frio, acho que 12 graus, para uma temperatura de outono no leste europeu.
Ao sentar no trem, uma lágrima escorreu em meu rosto. O que havia acontecido comigo? Os pensamentos… onde estavam? O campo… as paredes… eu não estava mais lá, mas o campo mantinha algo meu ali, algo que não sabia mais se ia conseguir sentir novamente. O campo me impediu de pensar… A pergunta mesmo… E tudo o que havia desapareceu atônito em meio às salas vazias repletas de camas de palha e fotos de homens com pijamas listrados.
Mas a pergunta mesmo… para onde ela foi parar? Eu ainda me pergunto, em sonhos, se a pergunta foi respondida ou não. Ou se eu apenas a fiz pensando num futuro que na época acreditava ser uma resposta às incongruências do meu passado. E chegar ao hostel, com pizza e cerveja, não foi tão acalentador quanto eu gostaria. Eu tinha medo de não dormir aquela noite… enquanto algo dentro de mim me mantinha acordado sem perceber, passando as horas e horas com as mesmas imagens do campo, das salas, dos fornos crematórios.
Não entendi o quanto o campo me queria para ser tragado como mais um dos mortos de Auschwitz, sobreviventes do holocausto e do impacto de um genocídio de 6 milhões de judeus. Isso foi chamado em hebraico de Shoah, o irrepresentável. A cada ano, menos lembrado na curta memória do povo europeu e seu medo derivado da tolice de que a vida humana não possui sentido algum.
Nem pensar parece surtir efeito diante da falta de sentido. Dr. Viktor Emil Frankl assim pensou quando lá esteve preso, prestes a morrer por qualquer descuido consigo, ou mesmo morrer por qualquer das vontades dos soldados alemães. Os motivos de um aprisionamento daqueles, tão sem sentido quanto qualquer outra coisa na lenta história humana. Eu lá também tendo em mim um pensamento, não o pude sustentar devido ao apelo iminente do campo em manter-me como um prisioneiro fiel às suas câmaras de gás.
Eu ainda me pego a pensar… sobre a pergunta que fiz. Acho que eu não a respondi direito, mas saí de lá vivo para lhes contar isso em um dia depois do outro. Hoje, menos frio do que eu saberia indicar na época, com a memória prestes a esquecer o que poderia permanecer para meus filhos e os filhos de meus filhos.
E no final, isso é só mais um dia frio em minha vida.
Referências:
FRANKL, Viktor Emil. Em Busca de Sentido: um psicólogo no campo de concentração. Tradução de Walter O. Schlupp, Carlos C. Aveline. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 1991.
Estevan de Negreiros Ketzer é psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador do IMEC, França. Pós-doutorando em Letras pela UFMG. Email: estevanketzer@gmail.com.
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Foto da Capa: Wikipedia