Este texto dá continuidade ao projeto de incentivar coletivos de professores das redes de ensino a organizarem-se para publicação de suas experiências em livro. Ele dá seguimento ao meu texto “O que escrevem professores” e faz parte de uma série de artigos que visam dar conta das etapas de redação de ensaios sobre a experiência de aula de professores das escolas.
Depois que o professor ou o coletivo de professores tomou a decisão e escolheu o tema, é hora de iniciar a redação do ensaio. Existem inúmeros livros que ensinam a escrever. São manuais básicos de leitura de qualquer estudante de ensino superior. Você não é obrigado a conhecer Confissões de um jovem romancista (Record, 2018), de Umberto Eco, mas se você não conhece dele Como fazer uma tese (Perspectiva, 1989), algo de errado aconteceu no currículo de sua formação. William Zinsser, em Como escrever bem (Fósforo, 2021), estabelece o espectro de características para a boa escrita. Escritor e professor, colaborou com inúmeros jornais e tem experiência. Já no início da obra, ele narra seu encontro com outro palestrante, o Dr. Brock (nome que Zinsser inventou), reunidos para falarem sobre a escrita como profissão em uma escola de Connecticut. O debate que se instalou entre ambos caracteriza o horizonte onde nós, professores, nos situamos para escrever. Na minha visão, ele implica na clareza de três pontos de partida e ter à disposição uma “caixa de ferramentas”.
Pontos de partida do ato de escrever
O primeiro ponto de partida que os professores precisam é a definição do seu lugar como escritor. Para Brock, escrever precisa ser algo divertido, como se as palavras fluíssem para o papel depois de um longo dia de trabalho. Para Zinsser, era o contrário, escrever era algo difícil e solitário “raramente as palavras fluíam com facilidade”. Para ambos a escrita era algo importante, mas para o primeiro, escrever era só o ato de “exprimir tudo o que você sente”, quando então as frases saem. Para o segundo, ao contrário, “reescrever é a essência da escrita”: escritores profissionais reescrevem suas frases inúmeras vezes para melhorar. Para Brock, escreve-se quando se quer e quando dá; para Zinsser, escrever é um ofício e, por isso, precisa de uma rotina diária – ele também estava fazendo seu livro como dever de ofício porque é professor de um curso de jornalismo. Nesta profissão, escrever diariamente é uma obrigação “você aprende a fazê-lo todos os dias, como qualquer outro trabalho”.
O segundo é a definição da matéria da escrita. Jornalistas escrevem todos os dias sobre os mais variados temas, mas professores escrevem recursos de ensino. Eles escrevem planos de aula e planos de ensino e verificam seus resultados. Isso é seu trabalho diário. Relatar seu processo de aprendizado, dúvidas, inseguranças e projetos num texto narrativo-interpretativo não faz parte de seu cotidiano, ainda que desejável. Por isso, precisam saber que escrever sobre uma experiência de ensino não é o mesmo que escrever um plano de aula. É algo mais. Escrever um livro ou mesmo um artigo sobre sua experiência didática é um trabalho extraordinário para o professor. Ele precisa elaborar, a partir de seus sucessivos planos de aula, um significado, rever suas bases teóricas e confrontar sua prática. Esta narração escrita pode ser usada para uma apresentação em uma reunião escolar ou mesmo em um conselho de classe. Pode também ser apresentada para publicação em uma revista ou apresentada em um congresso de professores da rede à qual pertence. Mas aqui queremos destacar como se pode transformar em livro, individual ou coletivo e, para isso, a experiência da escrita de outros profissionais é importante.
O terceiro é a escolha do método ou caminho para escrever. A história contada por Zinsser tem o mérito de reconhecer que não há nenhum método ou caminho “certo” para fazer um texto escrito, pois é um trabalho também pessoal “Há todo tipo de escritor e todo tipo de método, e qualquer método que ajude a você a dizer aquilo que quer dizer será o método certo para você” (Zinsser, p. 17). O filósofo esloveno Slavoj Zizek afirmou certa vez que seu método era listar alguns tópicos e após escrever excessivamente. Você lê seus textos e vê que são labirínticos, acompanha seus argumentos e quando parece que está perdido, um insight vem para organizar tudo e mostrar que aquele caminho tortuoso que o filósofo escolheu era apenas outra forma de explorar suas ideias. Alguns escrevem um esboço; outros partem direto para o texto indo atrás da fundamentação nas definições de autores a medida que as ideias exigem – meu método – e outros ainda passam tempos na primeira linha para depois, ultrapassada, escreverem interminavelmente. Seja em qual ponto do espectro do processo da escrita está um autor, o ato de escrever exige uma negociação consigo mesmo. Não é algo totalmente natural, você não sai do nada escrevendo por aí. Você pode fazer isso, mas em algum momento, você volta para fazer ajustes. A essência de qualquer método de escrita é que você volta para corrigir e organizar. Zinsser diz que é essa tensão que faz de você um escritor. Sua ênfase está não no que o escrito diz, mas em como ele revela o que você é.
A caixa de ferramentas
Depois de esclarecidos os pontos de partida, é preciso recursos de escrita que aqui denomino de “caixa de ferramentas”. O que é isso?
A primeira vez que ouvi falar em caixa de ferramentas foi quando estudava a obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, o Anti-Édipo (Assírio e Alvin, 1972) como um recurso capaz de fazer um autor dispor de um mapa para enfrentar o mundo. Ela admite trocas, usos, reposições, novos arranjos do que se aprendeu na experiência, seja de leituras ou da prática. Confesso que na primeira leitura do Anti-Édipo, ainda na faculdade, a obra me causou espanto. Ele mesmo dizia que o que importava em sua obra era o que era útil para o leitor. Relendo novamente, entendi que se tratava de um método aberto para a construção de conceitos, para uma interpretação da realidade a partir daquilo que um pesquisador consegue apreender de um autor. Numa palavra, o que ele consegue reter conceitualmente e que se torna prático para sua interpretação. À primeira vista, parecia uma defesa do improviso intelectual, mas aos poucos foi se revelando um método importante para o trabalho intelectual. Suely Rolnik usou o termo em seu Cartografia Sentimental (Sulina, 2016) para descrever a subjetividade feminina nos anos 90 e Heraldo Silva para descrever o sistema teórico do filósofo Richard Rorty.
A caixa de ferramentas é uma metáfora. É uma imagem para dizer como usamos os conceitos e métodos à nossa disposição da melhor forma possível. Diz Silva que ela foi criada por Wittgenstein (1975) em sua obra Investigações Filosóficas para estabelecer uma “analogia entre as diferentes funções das palavras com as diferentes funções de ferramentas: em ambos os casos não há uma hierarquia, pois tanto a utilidade das palavras quanto a utilidade das ferramentas dependem, contextualmente, do uso ao qual se pretende destiná-las. Do mesmo modo que são distintas as funções dos instrumentos, também são distintas as funções das palavras, principalmente, no âmbito filosófico”. Nessa perspectiva, escrevemos segundo um arcabouço teórico que possuímos e que foi produto de nossas leituras, nossas experiências, nossa forma de interpretação da realidade. Se somos um filósofo profissional, aquele que vive para escrever suas ideias, compomos um sistema de pensamento.
Quando você lê o conjunto da obra de Michel Foucault (1926-1984) da Arqueologia do Saber à História da Sexualidade, você sabe que está diante de um sistema de pensamento. Ele possui uma forma clara de encadear os conceitos para explicar a realidade, é possível reconstruir em seu pensamento os conceitos que o guiam em sua análise. Niklas Luhman (1927-1988) é outro exemplo notável porque é justamente o papa do pensamento sistêmico, aquele que considera a comunicação a chave da regulação dos sistemas sociais. Mas somos apenas professores da rede de ensino tentando dar um sentido à experiência que produzimos. Nós não somos um filósofo da ciência, não estamos envolvidos na produção de inúmeras obras ao longo de nossa carreira, nem um sistema de ideias que oriente a ação educativa dos professores em geral. Nós estamos, isto sim, escrevendo uma obra – se escrevermos mais, tanto melhor! – neste momento para divulgar o nosso pensamento. Não é nossa profissão a escrita, ainda que seja uma de nossas práticas. É aí que entra a caixa de ferramentas. Ela é o recurso de que dispomos para análise da realidade extraído de nossa própria caminhada, seja por meio de leituras de autores do nosso campo teórico, mas também, porque não, de outros campos e interpretações, como da arte e da cultura, que também possam nos oferecer insights. Por que eu posso citar um filósofo e não um músico? Por que eu posso citar uma obra célebre e não descrever uma cena de cinema? É nesse sentido que o famoso “tudo vale” de Paul Feyerabend (1924-1984) está na base da “caixa de ferramentas”.
É que, quando você escreve, você precisa também de liberdade metodológica. Fayerabend faz isso. Eu entrei em contato com a sua proposta nas aulas da disciplina de Filosofia da Ciência do meu curso de História da UFRGS no ano de 1985, ministrada por Anna Carolina Regner. Marco Zingano diz que ela era uma “professora infatigável, de grande generosidade”. Anna Carolina, como era mais conhecida entre nós, marcou com um selo humano as muito ásperas e abstratas discussões em filosofia. Dedicou-se ao estudo da história e filosofia das ciências modernas. Neste âmbito, encontrou seu primeiro grande filósofo, Paul Feyerabend, cujas ideias ela ajudou a disseminar em nosso meio acadêmico. Liamos com afinco sua obra Contra o Método (Unesp, 2011), onde lançou a sua filosofia anarquista da ciência que rejeitava a existência de regras metodológicas universais. Para os demais professores de metodologia científica, isso soava como uma heresia, afinal, a ciência quer se definir pelo método científico, isto é, sistemas de produção e organização do conhecimento com base em regras rígidas válidas para todos os campos. Com ele aprendi que a existência de regras científicas existe com mediações, para as ciências exatas era natural, afinal, a pesquisa de laboratório efetivamente avança com base em seus pressupostos, mas para as ciências humanas havia nuances, e eu era um historiador e via a história humana mais flexível do que ratos em um experimento de laboratório.
Fui influenciado pelos pressupostos de Feyerabend em minha produção intelectual. Nem sempre seguirei regras metodológicas rígidas em meu escrito, ainda que possa garantir que jamais faltei com a verdade. Assimilei a crítica de Feyerabend à consistência do critério, de que nosso pensamento deve se ajustar à caminhada da humanidade em nossa área, princípio que critica parte da lógica de que as teorias antigas sempre têm razão. Se lemos um autor, ele pode ajudar ou não em nosso trabalho: se nos fixamos demais para explicar nosso mundo, podemos errar, podemos não encontrar explicação para a singularidade que está à nossa frente. Não dá para encaixar o mundo em caixas. É nesse momento que criamos um conceito, uma explicação, nos termos de Gilles Deleuze e Félix Guattari. A caixa de ferramentas permite isso: o sistema fechado e adotado sem afetação não. A questão não é que as teorias que nos antecedem não tenham valor, mas que o escritor também tem o direito de fazer uso de outros recursos de escrita – racional, retóricos, poéticos – para desenvolver seu pensamento, suas ideias. Em sua formação, você é familiarizado pela universidade a determinadas ferramentas de escrita, determinados modos de escrever, mas ao longo do tempo, você desenvolve suas próprias ferramentas a partir de leituras, de práticas, de observações. Eu tenho as minhas que interferem aqui, e uma delas é me inspirar nos autores que, pelo mundo afora, entendo que realmente sabem escrever, como Stephen King.
Vocabulário, simplicidade e muita escrita
Como escrevem aqueles que escrevem? Vou tomar o exemplo de Stephen King, um dos mais prolíficos escritores do mundo. É o nono autor mais traduzido no mundo, segundo a Wikipédia, com mais de 60 romances, com em média 500 páginas. Minha esposa é fã dele e eu não, não sou leitor de literatura, o que é um grave defeito, mas aprecio seu Sobre a Escrita (Objetiva, 2015) pois é o testemunho de alguém que realmente escreve. Ele dedica um capítulo de sua obra justamente a Caixa de Ferramentas. Ele faz analogia com a caixa de ferramentas de seu avô, carpinteiro, com três bandejas. Enquanto ele está interessado em descrever literariamente a caixa de seu avô, eu me concentro em entender seu método de trabalho. Como nós, King entende a caixa de ferramentas como algo pessoal “Gostaria de sugerir que, para escrever com o máximo de suas habilidades, convém construir sua própria caixa de ferramentas e depois trabalhar a musculatura para carregá-la com você. Assim, em vez de topar com um trabalho difícil e desanimar, talvez você saiba pegar a ferramenta certa e partir para o trabalho imediatamente” (King, p. 101). Isso significa que se uma caixa de ferramenta é muito grande para carregar, perde sua utilidade.
Apontei três pontos de partida para escrever: a definição de seu lugar, do seu tema e do seu método. Descrevi que todo autor deve ter uma “caixa de ferramentas”, os conceitos ou teorias que o auxiliam na explicação da sua realidade, o que se denomina de “apoio teórico”. Neta caixa, na bandeja mais próxima, ficam as ferramentas mais comuns. Na escrita, é o vocabulário. Ele só diz no capítulo seguinte como adquiri-lo, mas tenho certeza de que você já suspeitava “se você quer ser escritor, existem duas coisas a fazer, acima de todas as outras: ler muito e escrever muito. Não há como fugir dessas duas coisas. Não há atalho” (King, p. 126). É exatamente assim comigo, então acredito que em maior ou menor grau, será assim com você. Quando estamos na universidade fazendo as leituras das disciplinas de graduação, estamos não apenas incorporando os conteúdos que serão nosso objeto de ensino: estamos também ampliando nosso vocabulário com as leituras que fazemos.
O final desse processo se dá com o Trabalho de Conclusão de Curso. No meu tempo, era um trabalho com peso: fazíamos entre 100 a 150 páginas, onde desenvolvíamos um trabalho consistente. No curso de História, revisitávamos as fontes, a literatura, apropriávamos de uma teoria, fazíamos sua demonstração, estabelecíamos os limites da pesquisa. Tudo isso exigia conceitos, vocabulário, palavras absorvidas por nós ao longo da graduação. Depois, eu me vi professor de universidades privadas e lamentei o quanto se perdeu o incentivo ao grande trabalho de conclusão. Vi alunos apresentarem trabalhos com dez ou vinte páginas (meu deus, um artigo!) como trabalho final de curso. Eu sabia que isso era produto de muitos fatores, mas vi principalmente como o efeito de um tempo marcado pela aceleração, como anunciava Paul Virilio, e que, aos poucos, cedeu à maldição das redes sociais e seu limite de 140 caracteres.
Depois do vocabulário, vem o estilo na bandeja seguinte: a simplicidade. King diz, sem dizer quais, que há cursos onde o vocabulário é portentoso. Não sei se modificou, mas eram assim os textos e discursos que eu via no Curso de Direito da Universidade. King ironiza com o texto difícil e cheio de palavreado de H.P. Lovecraft, mas o modo como o descreve seria idêntico a qualquer monografia de direito da época, com suas expressões “ditirâmbicas”, etc. A lição de King é que vocabulário é algo que se melhora e não é necessário nenhum esforço consciente para isso, apenas leitura. Ele critica os autores que enfeitam o vocabulário, que procuram palavras difíceis para impressionar “é como enfeitar seu animal de estimação com roupas sociais. O bichinho fica morrendo de vergonha e a pessoa que cometeu esse ato de fofurice premeditada deveria ficar mais ainda” (King, p. 105). Sua regra é: “use a primeira palavra que vier a cabeça, se for adequada e interessante”.
A escrita é feita de palavras e elas se adequam aos contextos. Não devemos nos frustrar ao constatar que o que escrevemos ficou aquém do que queríamos, porque é da natureza da escrita. O argumento da simplicidade defendido por Zinsser tem um preço, que é o de… simplificar, de tornar palatável ao leitor nosso escrito. Nos perdemos fácil nas palavras desnecessárias, nas construções circulares. Por todo o lado, a língua pode se tornar difícil “que pai ou mãe consegue montar um brinquedo para uma criança com base nas instruções que vêm com a embalagem?” pergunta Zinsser (p. 19). Recusamos o simples, preferimos inflar, queremos parecer importantes, mas isso não leva a lugar nenhum. Simplificar não leva a perda do conteúdo, mas a sua inteligibilidade: simplificamos quando preferimos a palavra curta a longa, recusamos os advérbios que já estejam contidos no verbo, preferimos a voz ativa à voz passiva, os chamados “elementos adulterantes da frase” (Zinsser, p. 20). A simplificação deve ser a regra.
Tirar o excesso é uma obrigação. Mas ninguém diz o que é o tal do “excesso” que marca nossa escrita – Zinsser fala em pensamento limpo. King diz que existem três tipos de escritores. Os primeiros são os escritores ruins, que estão na base da pirâmide da escrita. São ricos e até compram casas no Caribe. Há um segundo grupo no meio da pirâmide que King chama de “competentes” e que existe em todas as áreas, um grupo grande e acolhedor. Luto para estar aí. E há, acima destes, na ponta da pirâmide, os gênios “com um talento que está além da nossa capacidade de compreensão, absolutamente fora de alcance. A maioria dos gênios se quer compreende a si mesmo. Muitos deles levam vidas infelizes” (King, p. 124). King é muito irônico na sua descrição e nela situo os autores que me inspiram a escrever. Umberto Eco é um deles. A esperança de King é poder transformar um escritor competente em um bom escritor, o que não significa torná-lo gênio, uma classe um pouco melhor dos simplesmente competente. É aonde quero chegar. É que para King estar na ponta da pirâmide não significa grande coisa, já que escritores como Charles Dickens e Shakespeare, que consideramos gênios, não foram reconhecidos em sua época, enfrentando ataques da crítica por suposto sucesso “com as classes populares”.
A terceira prateleira da caixa de ferramentas é a própria experiência da escrita. Cada um tem sua experiência de escrever ao longo da sua existência. Eu comecei escrevendo artigos de jornal. É que sempre há nos jornais uma página dedicada à opinião, seja nas grandes capitais ou do interior. Na cidade de Cidreira, onde veraneio, a Princesinha das Praias possui um jornal de divulgação local que tem cerca de 6 páginas chamado O Marisco, o que é pouco, mas possui uma área dedicada a artigos de opinião. Pequeno, mas está lá. Nunca colaborei, mas sei. Comecei a colaborar com Zero Hora, mas consegui ir mais longe: Folha de São Paulo e Jornal do Brasil. Depois, com a internet, vieram as páginas das plataformas de jornais on-line: Sul 21, Le Monde Diplomatique Brasil, A terra é redonda, entre outros. No meio do caminho, escrevi blogs em plataformas de diversos países de língua portuguesa e espanhola. Escrever é um hábito. Você também pode fazê-lo. Nesse caminho, foi justamente o interesse pelas classes populares que me motivou: eu lia muito novos autores e queria fazer com que o leitor comum conhecesse seus temas, suas abordagens. Eu escrevia sobre o mundo que passa inspirado no pensamento dos autores que eu lia, eu interpretava o mundo a partir de seu olhar, e no caminho, me dei conta de que o seu olhar se fez meu. Eu havia incorporado em meus pensamentos conceitos e interpretações. O processo de interpretação de realidade havia finalizado: da teoria à prática, como dizem na universidade.
Públicos da escrita
Escrever para o público geral é diferente de escrever para acadêmicos. Tive por alguns anos o desejo de ser professor universitário da UFRGS. Fui professor de diversas disciplinas em universidades privadas e cheguei a ser professor substituto da UFRGS. Mas nunca tive o desejo de escrever para a universidade, pois eu me lembrava das prateleiras de dissertações de mestrado e doutorado onde raramente os cidadãos iam. Também sabia que os artigos escritos para revistas científicas, apesar de trazerem reconhecimento, tinham poucos leitores. Era o contrário de publicar em jornais: eu sabia que era lido porque o leitor me cumprimentava, recebia retornos por e-mails. Não existe escritor sem leitor. Por isso comecei a escrever artigos de opinião para jornais. É mais simples porque o espaço assim exige. A academia tem suas exigências: ABNT sempre, o que torna para mim o texto seco, truncado. Quem para tudo para ir para o rodapé ou para o final do texto, a bibliografia? Por isso descobri no ensaio uma forma intermediária: você ali podia ter o melhor dos dois mundos. Tem a criatividade do jornalismo, a análise do artigo científico e permite se libertar de algumas regras.
Não é necessário dizer que há inúmeras definições de ensaio, como defensores e críticos. Quando faço um texto que chamo “ensaio”, é uma prosa de não ficção com um tema central e diversos argumentos e que não passa de dez páginas padrão para amplo público. Este texto que você está lendo é o meu ensaio. Para mim é uma versão melhorada da antiga dissertação, é a solução interpretativa que dou sobre um problema a partir de minhas leituras. Sua forma simplifica exigências acadêmicas – eu posso ultrapassar as quatro linhas para fazer uma citação no texto, eu não preciso fazer rodapés que podem ser maiores que a página do meu texto. O que não posso é deixar de fazer mínimas referências ao longo do texto (o que fica entre parênteses) para depois incluir numa bibliografia, ainda que ela não seja tão comum em ensaios. Mas é assim que eu os defino e faço.
O exemplo dos ensaios dos suplementos culturais dos jornais de grande circulação é inspirador. Para o amplo público, eles cumprem o papel de traduzir a produção acadêmica para a sociedade. Por exemplo, o articulista da revista Serrote Paulo Roberto Pires organizou um livro a partir de artigos que publicou sobre o tema “ensaios” intitulado “Doze ensaios sobre o ensaio” (IMS, 2024). Artigos médios publicados em diferentes momentos viraram livro. A simplicidade está no fato que os autores são respeitados em suas citações, mas raramente são indicadas as páginas das obras de onde foram tiradas as passagens. É um jornalismo que diz: “confie em mim, na minha leitura. Eu estarei aqui se quiser os pormenores, mas agora, deleite-se apenas com minha análise”. É claro, é uma escrita que se limita a determinadas situações, e nesse sentido, se encaixa como produto do uso da caixa de ferramentas de Michel Foucault: “A teoria como caixa de ferramentas quer dizer: a) que se trata de construir não um sistema, mas um instrumento: uma lógica própria às relações de poder e às lutas que se engajam em torno delas; b) que essa pesquisa só pode se fazer aos poucos, a partir de uma reflexão (necessariamente histórica em algumas de suas dimensões) sobre situações dadas (FOUCAULT, 2003, p. 251). Por isso, a caixa de ferramentas é tão útil ao ensaio”.
A gramática é a quarta prateleira. A receita do autor de Carrie para solucionar os problemas gramaticais é muito simples: “Relaxe. Não vamos perder muito tempo aqui. Ou você absorve os princípios gramaticais de sua língua nativa por meio de conversação e leitura, ou não absorve” (King, p.106). Ainda assim, King repassa algumas observações. Manter as regras gramaticais para evitar confusão e desentendimento; uso de substantivos e verbos na mesma frase é indispensável; relaxe: ninguém sabe ao final se está fazendo direito o uso das classes gramaticais; seja honesto: você tem palavras que não gosta, assuma isso; evite a voz passiva e advérbios “acredito que a estrada do inferno esteja pavimentada com advérbios”, diz King (p. 111); não trabalhe com pressão – isso dá medo de escrever e finalmente, a que considero mais importante, divida sua frase em duas, isso facilita o leitor. É a regra da simplicidade. Ele não chega a explorar mais este ponto, pois entende que todos entendem isso. Zinsser, no entanto, dedica-se mais a este ponto.
Simplificar para o autor de Como escrever bem é “despir cada frase até deixá-la apenas com seus componentes essenciais”. Toda palavra que não tenha uma função, toda palavra longa que poderia ser substituída por uma palavra curta, todo advérbio que contenha o mesmo significado do que já está contido no verbo, toda construção em voz passiva que deixe o leitor inseguro a respeito de quem está fazendo o quê – todos esses são elementos adulterantes que enfraquecem uma frase (Zinsser, p. 20). Concordo em gênero e grau com ele, mas confesso que a palavra despir me deixa incomodado. Eu me pergunto se existe uma frase realmente “nua”? O filósofo Giorgio Agamben, em Nudez (Autêntica, 2014), no artigo que dá nome à obra, explorou este tema. Ele partiu da performance de Vanessa Beecroft realizada na Neue Nationalgalerie, em Berlim, no dia 8 de abril de 2005, onde cem mulheres nuas (na verdade, de colant) se colocaram à vista de todos. Sua descrição do que aconteceu, da vergonha que acometeu os visitantes, revela que este era um “não lugar”, de que não aconteceu como previsto. Ele lembra que essa nudez se repetiu em Abu Graib, o que revela que uma de suas faces pode ser a tortura. Nesse sentido, o desejo de fazer a frase nua só pode ser algo impossível: procurar escrever uma frase totalmente despida de qualquer elemento adulterante é um trabalho torturante. Impossível, não sai como o previsto. Você repassa umas duas ou três vezes o texto, mas você não pode substituir o tempo em que o produziu pelo que você o corrige.
Segundo Agamben, fazemos isso, pois estamos impregnados de teologia. A nudez é da tradição cristã e tem na escrita uma espécie de queda ou pecado original. Queremos encontrar a escrita perfeita nessa escrita nua, a ideia original de graça que vestia Adão e Eva antes da queda. A escrita seria esta espécie de pecado original, expulsão do paraíso dos nossos pensamentos, e a gramática e as regras do bem escrever querem nos retirar do inferno que é compartilhar com os outros nossas ideias – quem já passou por ter seus escritos criticados sabe do que estou falando. Depois de repassar diversos autores da tradição filosófica sobre a nudez, Agamben chega a Walter Benjamin, para quem a nudez procurada tem uma complexidade que vai além do nu, do revelado. Ela inclui o velado “na beleza, véu e velado, o invólucro e seu objeto estão ligados por uma relação necessária que Benjamin denomina de “segredo”. Ou seja, o belo é o objeto ao qual o véu é essencial” (Agamben, p.121-122). Da mesma forma com a escrita, você não pode encontrar uma escrita nua simplesmente porque ela precisa de um véu que caracteriza seu autor, o que chamamos de “estilo”. É por isso que há um limite em que podemos simplificar, limpar e arrumar em um texto. Você não consegue tirar todo o excesso de um texto porque algo ali também o caracteriza: uma forma de colocar o objeto, de descrever, de olhar.
Zinsser diz que devemos fazer o texto limpo porque ninguém mais tem tempo de ler, ou ainda, o tempo que dispõe é de trinta segundos de atenção. Mas simplificar para atender as necessidades de um leitor demasiado envolvido no mundo tecnológico não parece ser o objetivo de professores que querem ser autores. Se não, não escreveriam. O próprio King é repleto de tortuosidades em seu texto literário como Zizek é em seu texto filosófico. Eles fazem isso na certeza de que o que escrevem tem algo a dizer, a conectar com seu leitor. Que o caminho que escolhem para escrever importa. Esse modo de dizer é justamente a exposição do labirinto de pensamentos que tem seu autor na forma escrita. Não é notável o quanto King descreve os meandros da escrita imaginando inúmeras situações para, ao final, apenas concluir em uma frase o que queria dizer? Nesse sentido, contexto da escrita importa, tamanho nem tanto.
Como saber se estamos navegando na escrita ou, ao contrário, apenas construindo um texto verborrágico? Este aparece na falta de encadeamento das ideais de um autor, na má escrita que se perde ao longo do tempo. Se as frases se sucedem em um encadeamento natural, é provável que você esteja no caminho certo. Quando relemos nosso texto e nos damos conta de que derrapamos em algum lugar, que faltam conexões, precisamos parar e refazer. Manter o tempo verbal, a manutenção das sequências das frases com elos claros. Persistir com paciência na revisão do texto é necessário e envolve uma leitura interior porque é preciso ser claro para quem lê o texto pela primeira vez o que se quer dizer “Pensar com clareza é um ato consciente que os escritores devem se esforçar a realizar. Escrever bem não é algo que surja naturalmente” (Zinsser, p. 26).
A conclusão é que fazemos bons textos se os fazemos simples. A simplicidade é produto da busca pelo fim do excesso. Ele está nos detalhes, diz Zinsser. Não é “no atual momento”, é “agora”; não é que “nós estamos na direção de um comitê”, mas sim “dirigimos um comitê”; um “médico pessoal” é o “seu médico’. Não é necessário dizer “no atual momento estamos enfrentando alguma precipitação atmosférica”, mas simplesmente “está chovendo”. Os exemplos de Zinsser revelam que colocamos nossas frases palavras que não servem para nada. Há um limite. É claro que se é um conceito elementar em sua disciplina como “paradigma”, ele não deve ser substituída por “parâmetro”, ainda que possa soar um pouco difícil. Na concepção de excesso de Zinsser não há espaço para os conceitos, para os argumentos. Isso é um problema. Não devemos descartar palavras que possam afetar o conteúdo do que queremos demonstrar. Faça o número de revisões que considerar satisfatórias para o texto que produz, mas também não leve mais tempo revisando seu texto do que leva para escrevê-lo. Para escrever, defina seu modo, o lugar de sua fala, seu método, sua caixa de ferramentas. Estes são meus critérios, e talvez sejam uteis para você. Eles são importantes para fundamentar o que vem depois: a construção do argumento, tema de nosso próximo texto.
Bibliografia:
AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte:Autêntica, 2014.
ECO, Umberto. Confissões de um jovem romancista. Rio de Janeiro: Record, 2018
___. Como fazer uma tese. São Paulo:Perspectiva, 1989.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O Anti Édipo – capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio e Alvin, 1972.
FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Campinas: Unesp, 2011.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, s/d.
____. História da Sexualidade. Rio de Janeiro: Graal,1985.
LUHMAN, Niklas. Poder. México: Universidade Ibero-Americana, 2005.
PIRES, Paulo Roberto. Doze ensaios sobre o ensaio. São Paulo: IMS, 2024.
SILVA, Heraldo. SILVA, Heraldo Aparecido. A caixa de ferramentas conceituais de Richard Rorty: o uso de técnica ad hoc. Cognitio Estudos, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 257-267.
STEPHEN, King. Sobre a Escrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
ZINSSER, William. Como escrever bem. São Paulo: Fósforo, 2021.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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