Em minha última coluna, contei um pouco das dificuldades que uma pessoa com deficiência passa para exercer direitos comuns e já consagrados, como estacionar seu carro na vaga para ela reservada. Como costuma acontecer, recebi várias mensagens de leitores e leitoras compartilhando comigo as dificuldades que passam, o desrespeito que se repete e os carros que estão lá, ocupando um lugar que não lhes pertence, “só por um minuto”,
Se não bastasse isso, há uma dificuldade adicional: o constrangimento sofrido por aquelas pessoas com uma deficiência não visível, como, por exemplo, os autistas. Para quem está olhando, são pessoas que não tem motivo para estacionar naquelas vagas, mas tem todo o direito de fazê-lo.
Já usei esse direito algumas vezes, ao levar meu filho autista para algum lugar. Não foram poucas as ocasiões em que recebi olhares condenatórios de alguém à minha volta. Em um shopping daqui de Porto Alegre já fui xingado ao sair do carro. Esse assédio é comum, muitas pessoas se sentem à vontade para julgar ou desqualificar a deficiência alheia, principalmente quando há o exercício de algum direito como em filas de cinema ou supermercado.
O trabalho em defesa dos direitos das pessoas com deficiência nas redes sociais e na advocacia pública tem me apresentado outras situações semelhantes como é o caso da fibromialgia, enfermidade incurável e que também é objeto de questionamento de pessoas enxeridas e sem conhecimento mas, também, de profissionais da saúde.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Reumatologia, a fibromialgia é uma síndrome clínica que se manifesta com dor no corpo todo, principalmente na musculatura. Junto com a dor, a fibromialgia causa sintomas de fadiga (cansaço), sono não reparador (a pessoa acorda cansada) e outros sintomas como alterações de memória e atenção, ansiedade, depressão e alterações intestinais.
A Sociedade Brasileira de Reumatologia também informa que o principal sintoma é “a dor difusa pelo corpo”. Aponta também a existência dos efeitos no sono, sendo que a pessoa acometida pela fibromialgia possui dificuldade de manter um sono profundo, tendendo a ser superficial e/ou interrompido.”
Esse sono de má qualidade aumenta a fadiga, a contração muscular e a dor, transformando-se em um círculo vicioso em que cada sintoma leva ao agravamento dos demais, afetando a memória e a concentração, o que é potencializado pelo stress.
O diagnóstico da fibromialgia é apenas clínico, não há um exame para determinar se a pessoa possui, ou não, tal enfermidade. E, mesmo depois que a recebem, ainda assim tem sua condição negada ou diminuída em seu trabalho e círculo social ou mesmo com profissionais da saúde. Mário E. Saretta, antropólogo que pesquisa o tema, atribui isso à ausência de um marcador específico, a ser comprovado por exames laboratoriais ou de imagens para a determinação da fibromialgia, bem como o histórico de diversas revisões realizadas nas diretrizes de diagnóstico.
Como consequência disso, aponta Filipa Neves Ribeiro, da Universidade do Porto em Portugal:
Na nossa sociedade, e por vezes até entre os profissionais de saúde, existe uma hierarquia informal de doenças médicas, em que é dado maior importância a umas em detrimento de outras. As que ocupam lugares inferiores encontram-se frequentemente associadas a estigma, que é o caso da fibromialgia – doença crónica que não pode ser diagnosticada nem tratada através de procedimentos tecnológicos ou invasivos.
Para além disso, o médico tende a investir mais em doenças agudas e em que a cura é facilmente atingida, e menos em doenças que sejam crónicas e os tratamentos oferecidos sejam reduzidos ou não tão eficazes. Aliás, a generalidade da sociedade não aceita sequer a fibromialgia como uma verdadeira doença. Tal deve-se, em grande parte, ao desconhecimento acerca do que é a fibromialgia, acreditando-se que seja antes um problema emocional/psicológico. Adicionalmente, não é dado crédito aos sintomas reportados pelos doentes: duvida-se da sua genuinidade e questiona-se se estes não estarão a simular ou a exagerar, colocando em causa o seu carácter e moral.
Por essas razões, muitos das pessoas que são acometidas por esse mal acabam por esconder tal condição, pois o resultado é a estigmatização, a invalidação do seu diagnóstico ou mesmo que passem a duvidar de seu caráter.
A quem expõe essa condição, principalmente em ambientes de trabalho, a medida mais adequada seria adequar o ambiente de trabalho a essa pessoa, de forma a minimizar o seu sofrimento e possibilitar que desenvolva suas potencialidade da melhor forma possível.
O U.S. Department of Labor’s Job Accommodation Network, departamento de órgão equivalente ao Ministério do Trabalho no governo dos Estados Unidos da América, esclarece que, na ampla maioria dos casos, adaptações simples permitem que a pessoa com fibromialgia continue a trabalhar.
Entre as adaptações mais comuns e eficazes para o trabalhador com fibromialgia se destacam períodos de descanso durante a jornada de trabalho, a flexibilização dos horários de trabalho e avaliar a possibilidade de trabalho remoto, em casa, se necessário. Recomendam também que as instruções ao funcionário sejam, sempre que possível, por escrito e que se reduza o stress laboral.
Outras medidas que são sugeridas dizem respeito às condições correlatas que podem surgir em razão da fibromialgia, como depressão e ansiedade ou a fadiga crônica.
Seja com doenças crônicas ou com deficiências, a maior adaptação ao trabalho sempre será o diálogo claro e honesto, respeitar os limites das pessoas e manter o foco nas potencialidades e não nas limitações. Ter fibromialgia ou ser uma pessoa com deficiência não é nenhuma vergonha, vergonhoso é o preconceito.
Foto da Capa: Freepik