A primeira cena já dá as tintas: riso e desconforto nos acompanharão a cada minuto do filme Ficção Americana, que neste domingo, 10 de março, ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. Repleto de diálogos sarcásticos e instigantes, o filme começa com uma discussão entre um professor negro e uma aluna branca, durante aula de literatura. A jovem reclama do uso da palavra “nigger”, terrível e politicamente incorreta, ao que o professor relembra a importância do contexto e o fato de estarem analisando uma obra sulista escrita em meados do século XX. A menina insiste, o professor refuta, bufa, ela sai da aula chorando e batendo a porta. O professor é cancelado.
Assim entramos no universo de Monk, apelido de Thelonious Ellison (referências aos grandes Thelonious Monk e Ralph Ellison, são apenas o começo entre as inúmeras correlações que a obra nos traz). Ficção Americana é fascinante. A adaptação do romance Erasure (2011, Graywolf), de Percival Everett, marca de forma brilhante a estreia na direção do roteirista Cord Jefferson (The Good Place, Watchmen). Ele conquista o público com diálogos contundentes, humor refinado e reflexões que assolam muitos de nós, principalmente os negros. São questões como noção de pertencimento, racismo, diversidade e inclusão.
Já na segunda cena do filme, descobrimos que Monk não é somente professor, mas também escritor. Porém, ele está com dificuldade de ser publicado, já que seus livros, mesmo tendo qualidade reconhecida, não são aceitos por não terem apelo de venda. Não são suficientemente negros, não abordam as questões do dia a dia dos negros. Monk é negro, escreve sobre sua visão de mundo, mas, opa! Que mundo? Onde estão os guetos, o vocabulário, a dor, as drogas, a miséria, a violência?
É isto que vocês querem? Então o culto, refinado e elegante Monk contra-ataca, escrevendo um romance carregado de clichês e linguagem “pobre”. A ideia é confrontar as editoras, seu agente e outros detratores, mostrando que o que eles querem do autor é lixo. Surge então um outro personagem, o Monk disfarçado em um pseudônimo. O ‘novo escritor’, alterego de Monk, Stagg R.Leigh, tem o nome foneticamente semelhante a Stagger Lee (ouça também essa versão), uma popular balada norte-americana que detalha o assassinato de Billy Lyons nas mãos de Stagger Lee, um afro-americano. Stagg R. Leigh cai nas graças de uma editora, vira sucesso comercial e um estarrecido Monk é surpreendido pela aceitação do mercado e passa a ter uma cada vez mais tensa “vida dupla”.
Embora não seja condescendente com o mundo editorial ou com a indústria cinematográfica, Cord Jefferson também não se limita a um ataque direcionado somente à sociedade branca progressista, satisfeita com seu olhar aberto à diversidade. Tanto o roteiro quanto a direção conduzem Ficção Americana de forma a envolver o público em uma história familiar na qual homossexualidade, doença e luto são construídos com sensibilidade, sem descambar nas águas rasas do sentimentalismo. Se muitas vezes a trama remete a uma crítica aos privilégios e ao racismo estrutural do público branco, há um paralelo crítico também para os personagens negros, que lutam com seus próprios preconceitos.
Essa dubiedade é absorvida por Jeffrey Wright em uma atuação cativante como Monk, capturando a essência do protagonista em sua luta contra as expectativas sociais e pessoais. E o que dizer de Sterling K. Brown (This is Us e Pantera Negra)? Ele nos seduz como Cliff, médico e irmão de Monk, que, mesmo com seus conflitos pessoais, leva a vida de forma mais leve e livre que a do irmão. Os dois receberam uma justa indicação ao Oscar de Melhor Ator e de Melhor Ator Coadjuvante.
Desvio
A verdade é que fiquei tão completamente encantada com Ficção Americana que até abandonei o tema que estava preparando para esta coluna, que enveredava por outras vias da indústria cultural, mas que sutilmente se encontrava com a questão do filme. Queria falar sobre dois fenômenos recentes no mercado dos livros, impulsionados por fatores externos. Foi preciso o Carnaval para impulsionar a venda do livro Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. Foi preciso uma tentativa absurda e ridícula de censura para, num caso explícito de tiro que saiu pela culatra, elevar as vendas de O Avesso da Pele, romance de Jefferson Tenório. Ambos são autores brasileiros e negros. Esse seria o mote do meu texto nesta coluna, mas em uma conversa com a sempre atenta Cássia Zanon, veio a informação sobre o filme, e corri para ver. Deu no que deu.
Revisão: Rodrigo Bittencourt
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Foto da Capa: Reprodução