Em 9 de setembro, escrevi um artigo publicado aqui no Sler, sobre a paternidade socioafetiva, que para a data estava bastante atualizado. Todavia, como no Brasil as coisas andam rapidamente, a jurisprudência muda com certa frequência, quase tudo é questionado judicialmente pelos advogados, a previsibilidade jurídica é cada vez mais difícil, e os advogados e a sociedade precisam estar sempre atentos aos entendimentos dos tribunais.
Desse modo, porque houve, no dia 21 de novembro, importantíssimo julgamento pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja relatora foi a ministra Nancy Andrighy, que tratou sobre a possibilidade do reconhecimento da filiação socioafetiva entre avós e netos maiores de idade, volto a escrever sobre o tema.
Importante lembrar que o instituto da paternidade socioafetiva surgiu para reconhecer que a forte relação afetiva existente entre um pai ou uma mãe com alguém que amam ou consideram um filho ou filha, e vice-versa, independente do vínculo biológico, pode caracterizar a paternidade ou maternidade fundamentada no afeto.
Como havia o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) de que, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), haveria a proibição da adoção de netos pelos avós, também não seria possível a declaração da filiação socioafetiva nessas hipóteses.
Conforme publicado no site do STJ, a Terceira Turma do STJ considerou juridicamente possível o pedido de reconhecimento entre avós e netos maiores de idade, nos casos em que a relação entre eles supera a mera afetividade avoenga. Para o colegiado, “a declaração de filiação nessas hipóteses – com efeitos diretos no registro civil do filho socioafetivo – não encontra qualquer impedimento legal.”
Vale ressaltar que a ação que deu causa a esse julgamento foi ajuizada por um neto para ser reconhecido como filho socioafetivo de seus avós, mantendo-se em seu registro civil o nome da mãe biológica com quem ele também convivia. Veja-se que essa possibilidade de manter-se também a filiação biológica, com os efeitos jurídicos próprios, já havia sido declarada pelo Supremo Tribunal Federal com repercussão geral, conforme mencionei no artigo de setembro.
A ministra deixou claro que o reconhecimento da filiação socioafetiva é possível mesmo que exista a paternidade ou a maternidade do filho regularmente registrada no assento de nascimento, tendo em vista a possibilidade da multiparentalidade, conforme estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 622 da repercussão geral.
Para a ministra Nancy Andrighi, a impossibilidade do reconhecimento da filiação socioafetiva entre netos e avós, ao ver do TJSP, em razão de artigo do ECA que determina sobre a “adoção” não seria aplicável à filiação socioafetiva, especialmente no caso de reconhecimento de filiação de maior de 18 anos. Brilhantemente, ela salientou que “a socioafetividade não pode ser confundida com a adoção, tendo em vista que, na relação socioafetiva, não há destituição do poder familiar de vínculo biológico anterior, como ocorre na adoção de menor de idade”.
Ela também salientou que a vedação existente no artigo 505, parágrafo 3º, do Provimento 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que determina que “não poderão reconhecer a paternidade ou a maternidade socioafetiva os irmãos entre si nem os ascendentes”, tem aplicação nas hipóteses de reconhecimento voluntário de filiação socioafetiva perante os oficiais de registro civil de pessoas naturais.
Conforme destacou a ministra, para que possa ser verificado o interesse processual, ou seja, a necessidade de ajuizamento da ação para o reconhecimento da filiação socioafetiva avoenga, basta que o pedido da inicial contenha informações suficientes sobre a possível existência de laços de socioafetividade entre as pessoas cujo vínculo parental se busca reconhecer. Presentes essas informações, o processo pode seguir.
Foi destacado pela relatora que a “A filiação socioafetiva, que encontra alicerce no artigo 227, parágrafo 6º, da Constituição Federal, envolve não apenas a adoção, mas também parentescos de outra origem, conforme introduzido pelo artigo 1.593 do Código Civil de 2002, além daqueles decorrentes da consanguinidade oriunda da ordem natural, de modo a contemplar a socioafetividade surgida como elemento de ordem cultural”.
Essa decisão obviamente trará efeitos patrimoniais importantes, veja-se, por exemplo, que quando morrer a avó, ou seja, sua mãe socioafetiva, esse filho socioafetivo herdará igualmente a sua mãe e demais tios se ainda forem vivos. E depois, indiretamente, também poderá herdar da sua mãe biológica parte do patrimônio que era da sua mãe socioafetiva (avó).
Ainda que faça todo o sentido jurídico o entendimento do STJ, que as relações afetivas mereçam ser respeitadas, que não exista meritocracia nenhuma dos herdeiros para receberem as suas legítimas, fico pensando se os tribunais brasileiros não constroem muitos entendimentos legais que deveriam ser discutidos e debatidos pelos integrantes do poder legislativo.
Às vezes me parece que a separação dos poderes criada por Montesquieu, em três poderes independentes, o legislativo, o executivo e o judiciário, é algo fundamental para que se possa ter um governo limitado, para que se possa evitar o controle do povo por um tirano, enfim, para que exista verdadeiramente uma democracia. Entendo que cada vez que o judiciário mediante suas interpretações acaba regulando relações, criando novos parâmetros jurídicos não especificamente tratados pelo legislativo, sobre assuntos que não são urgentes, que deveriam ser discutidos amplamente pela sociedade e pelos legisladores, isso enfraquece o direito, a democracia, ainda que seja com a melhor das boas intenções e com as justificativas mais louváveis, morais e corretas tecnicamente se entendermos que o judiciário tem poder para suprir todas as falhas do legislativo em legislar sobre determinadas matérias ou de não legislar sobre o que o legislativo considerar que não deve sequer existir no ordenamento jurídico brasileiro. Os indivíduos organizam suas vidas de acordo com as leis vigentes, e de repente aquela realidade legal é mudada pelo judiciário ao invés do legislativo, o que me parece sobretudo injusto, acaba com a previsibilidade jurídica, fundamental para que as pessoas possam organizar as suas vidas nos mais amplos aspectos.
Nessa semana vi no Instagram um vídeo de parte do julgamento do Recurso Extraordinário 635659, de 25/06/2024, no qual o ministro Luiz Fux do STF falou sobre o ativismo judicial, e em que ele frisou que questões permeadas por desacordos deveriam ser decididas na arena política, “… é lá que tem que ser decidido, é lá que tem que pagar o preço social,… porque no estado democrático a instância maior é o parlamento. No estado democrático, a instância maior é o parlamento!”.
E você, o que acha sobre tudo isso?
Todos os textos de Marcelo Terra Camargo estão AQUI.
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