Por conta de uma gripe, não pude acompanhar minha esposa e amigas na ida ao cinema. Estava tão baqueado que, mais cedo, fiquei impossibilitado de ir a uma festa pré-carnavalesca, o ano todo esperada e onde encontramos, irmanados fervorosamente, queridos amigos e valiosos desafetos. Destaque-se que a ida ao cinema com as amigas fazia parte do conjunto dos eventos realizados em função da comemoração de seu natalício. Todavia, o sacrifício involuntário de minha ausência na antecipação das folias recifenses redimiu qualquer culpa ou delito por não acompanhar ao cine a corte por ela enobrecida.
Já adianto: até a conclusão deste texto, ainda não assisti ao “Ainda estou aqui”.
As confrades vieram de outras cidades, por conseguinte, ficaram de pernoitar em nossa casa. Daí, chegando do cinema, não tinham como não comentar e não compartilhar suas experiências comigo.
Tendo já todas elas, incluindo minha consorte, narrado e até interpretado, com caras, gestos e bocas, as passagens mais dramáticas, alguém se dá conta de que eu ainda não havia assistido à película. Eu, inclusive, nem tinha me dado conta de que o longa-metragem estava sendo adiantado diante do olhar da minha mente: o interesse pela história e a visibilidade que atingiu seduziram minha curiosidade e pedi que continuassem com a exposição.
No outro dia, no café da manhã, segue a animada conversa e os debates sobre a obra: a pessoa de Eunice, o desempenho de Fernanda, a ditadura e tudo o mais que a fita suscita. E, por algumas vezes, uma amiga ou outra alertava para que contivessem, um pouco, a empolgação, pois, naquela mesa, o único que não havia contemplado a história e os dramas da família Paiva era eu…
Todavia, em momento algum me senti furtado, pelo contrário, quanto mais, e diversamente, as impressões e emoções eram deitadas à mesa, meu interesse em ver o “Ainda estou aqui” crescia. Vez por outra, alguma das confrades, dividida entre constrangimento e empolgação, alertava: “Estamos dando spoiler”. Eu, de minha parte, racionalmente, até que queria concordar, porém, quanto mais as impressões se diversificavam e quanto mais as interpretações e análises iam ficando mais plurais, maior ficava meu interesse em presenciar diante da grande tela o desenrolar daquela história. Ou seja, a noção de spoiler havia perdido completamente seu sentido e significado.
Então, ficou muito claro para mim algo que sempre desconfiei: que filme bom não gera spoiler. E, quanto melhor for, seus significados não se esgotam em tentativas de análise e muito menos pela mera descrição de cenas.
Numa tradução sem muito arrodeio, o spoiler é um estragador, aqui no caso, um estragador de prazeres, pois frustra o prazer do expectador ao antecipar o desfecho de uma cena ou filme.
Décadas atrás, no Cinema São Luiz, abarrotado por conta de algum sucesso de bilheteria, quando ninguém era obrigado a sair do auditório ao terminar uma sessão, lá em cima, nas galerias, a partir da segunda sessão, acomodava-se uma moçada que passaria todas as demais sessões antecipando o momento em que Super-Homem faria a Terra girar ao contrário e ressuscitaria Lois Lane, o instante no qual Konan-Schwarzenegger esmurraria o camelo ou quando Lucke Skywalker finalmente acertaria o coração da Estrela da Morte.
Era uma sacanagem!
Contudo, contagiante… Assim, ficar mais uma sessão para repassar ao novo público a estranha sensação da antecipação, conferia às horas no cinema um entretenimento a mais, vivenciando assim o próprio vaticínio do Grupo Luiz Severiano Ribeiro: “cinema é a maior diversão”.
No São Luiz superlotado, chiclete grudado na poltrona, casais em amassada unificação e o pessoal da gréia (termo recifense de época com difícil tradução na contemporaneidade), eram partes tão constitutivas da ida àquela sala quanto o abrir das cortinas e o acender dos vitrais de inspiração francesa.
Entretanto, aquelas histórias de heróis e super-heróis não se reduziam aos feitos fantásticos simulados via efeitos cinematográficos: quem não gostaria de ter o poder de fazer o tempo voltar e reparar a mancada que deu com a pessoa amada? Quem nunca acreditou em alguma força interior que, inexplicavelmente, nos conduziu, mesmo inexperientes, ao sucesso diante do inesperado? E, quem, mesmo não tendo ainda perdido um grande amor ou se deparado com uma estrela da morte, ao pensar que essas coisas podem ocorrer, não almeja ter poder e força para ultrapassar esses desafios? É bem verdade que não se possa elevar à condição de metáfora o murro de Konan num camelo. Talvez seja exatamente aí onde reside o poder do clássico: se comunicar para além do imediato. Superman e Guerra nas Estrelas, dois clássicos, Konan, o bárbaro, o filme de entrada de Schwartzneger…
Spoiler: o esbofete no camelo é no momento 39’48’’do filme.
Um dos mais recentes blockbusters que vi numa sala de projeção (não confundir com a experiência em um verdadeiro cinema) foi o Missão Impossível.
Este sim gera spoiler. Se estraga toda a expectativa e surpresa da audiência se descrevermos os desfechos e sequência de cenas do filme, afinal, é isso que ele tem para oferecer: entretenimento visual, sustos, situações cômicas ou inusitadas que mobilizarão nossas emoções como que numa descida de montanha russa, mas sem o perigo real do maquinário falhar.
Contudo, temos que reconhecer que sequências de cenas impactantes e sofisticadas com efeitos especiais também podem marcar nossa memória cinematográfica e a própria cultura audiovisual. Comecemos por Buster Keaton, na segunda década do século passado, seguindo pelas inovações nas sequências de Matrix, chegando à enxurrada de digitalizados super-heróis nas programações atuais. Porém, para todos esses, se anteciparmos a descrição de cenas, enredo e sequências, o entretenimento se esvai, pois a diversão e o encanto da surpresa se perdem.
Descrevendo e tentando analisar Tempos Modernos, acredito que não esgotaria as possibilidades de produção de significado da obra. Por exemplo, a narração da icônica cena do operário Carlito sendo engolido pelas esteiras da grande máquina me parece não esgotar as possibilidades de significado que, metaforicamente, a cena gera. Em contrapartida, diferentemente, os apuros de Keaton saltando de um edifício a outro, tentando se manter de pé numa ventania ou sendo puxado na horizontal por bonde ou calhambeque, são apenas os perigos de um homem saltando prédios, encarando uma lufada ou tentando entrar num veículo em alta velocidade: são a segura sensação de perigo vivenciada numa confortável poltrona de cinema.
Por outro lado, acho que por mais que contasse em detalhes as sequências do Encouraçado Potemkin, não conseguiria antecipar a experiencia do ouvinte, acredito até que, quanto mais tentasse narrar o filme e analisá-lo, mais interesse geraria no meu ouvinte ou leitor: a trágica descida da escadaria de Odessa significa muito mais do que as imagens do descenso no escadório da portuária cidade do Mar Negro.
De filme bom, não se dá spoiler.
Em certo momento, no dinamismo da conversa sobre o “Ainda estou aqui”, já me via perguntando o que haviam achado da interpretação de Fernanda Torres, indagando sobre o que se mostrou da ditadura, se tinha cena de tortura, como era o personagem de Marcelo na narrativa?
Confirmaram umas coisas e negaram outras, me passaram suas impressões, seus elogios e críticas: nenhuma delas, ao contar sua versão do filme, foi uma estragadora de expectativas. Pelo contrário, o interesse e a curiosidade só aumentaram.
Como é que o filho de uma família de banqueiros abordou o período da ditadura sustentada inclusive pela elite financeira? Como Fernanda Torres se saiu dando vida aos sentimentos de uma personagem cuja história percorre décadas? Teve imagens de época? Como está estruturado o próprio filme?
Ninguém, ao tentar contar o que se passa em romances de amados, marques, conceições, viríssimos, clarices, castros, carolinas, suassunas, lins e carreiros vai estragar o prazer de quem ainda não os leu. Quero ver quem é que, ao tentar dizer o que viu em pessoas, rachels, drumonds, lygias, quintanas, coras, campos, cecílias, leminskis, patativas, batistas, bráulios e mirós vai estragar a novidade que eles sempre têm a nos dizer.
Acredito que filme bom tem algo de literatura… Filme bom não gera spoiler.
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Foto da Capa: Divulgação