Na segunda-feira, dia 2 de outubro de 2023, a Federação Gaúcha de Futebol lançou o “Protocolo Zero – Fim de jogo para o Racismo”. Com o apoio e organização da ODABÁ, o projeto tem a atrevida missão de ZERAR o placar de casos de racismo nos torneios de futebol que são balizados pela Federação.
Nós, membros e gestores da Odabá – Associação de Afroempreendedorismo, temos plena consciência do quão difícil é essa tarefa.
Eu, Kênia, mulher preta, cria do Partenon, empreendedora, que atua em posição de liderança no ambiente de trabalho, e que se vê hoje presidente desta associação, não poderia deixar de fazer uma provocação quando me vi no palco de um espaço genuinamente branco. E não foi uma provocação simplesmente por provocar. A intenção é indagar: vocês homens, brancos, héteros, cisgênero, com poder aquisitivo conseguem nos ouvir? Conseguem de verdade escutar e entender o que estamos denunciando?
Há uma necessidade de questionarmos toda a estrutura, mas quem é essa estrutura?
Quem a criou? Quem a mantém? Por que não é fácil desconstruir essa estrutura ?
Vai doer, tá? Vai doer em vocês, sobretudo em quem se vê nessa estrutura. Mas tenham certeza de que em cada um de nós pretos, dói ainda mais. Em cada uma das vítimas de racismo dentro do campo doeu infinitas vezes mais do que vai doer em vocês ouvir essas verdades que trazemos.
E, vejam bem, dois dias depois do lançamento do projeto, já tivemos um caso de racismo em campo!
Protocolo Zero ativado, com expulsão em campo, equipe jurídica acionada, e responsáveis pelos dois clubes ativados para encaminhamento dos trâmites legais, emocionais e todo o aparato que se faz necessário. Nós falamos que o protocolo é simples e a tolerância é ZERO. Não estávamos brincando, e vou falar de novo caso não tenha ficado entendido: dois dias depois do lançamento do protocolo tivemos expulsão, acionamento jurídico e trâmites encaminhados.
A bola contra o racismo está rolando e ela é feita de muitas facetas. Punição pra quem cometeu o crime, educação e conhecimento pra quem não o tem (ou finge que não tem), acolhimento pra quem foi vítima do ato.
Queríamos poder ter tido essa estrutura há mais tempo, para que nossos companheiros e companheiras do esporte tivessem sido poupados anos atrás, e não precisassem vivenciar tudo o que sabemos que acontece em campo. Porém, a Odabá tem apenas três anos de existência, logo, o que podemos fazer agora é pensar no futuro.
A Odabá tem em seu DNA o comprometimento com a aceleração da igualdade racial e com o fomento de iniciativas que promovam a cultura antirracista, por isso, desenvolvemos ações em diferentes formatos para conscientizar e engajar as organizações e a sociedade. Trabalhamos desenvolvendo ferramentas para uma educação coorporativa antirracista que seja efetiva na mudança sistêmica das organizações.
Além do nosso principal objetivo, que visa promover o empoderamento econômico do povo negro através do empreendedorismo, também buscamos reduzir a desigualdade racial no mercado de trabalho, como indica o objetivo 10 da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU). Sendo assim, nossos profissionais associados são os grandes agentes da formatação e transformação em cada projeto de educação antirracista que realizamos.
Atualmente, construímos os projetos de forma personalizada para cada organização.
Com projetos já realizados dentro deste eixo de educação corporativa antirracista já impactamos pessoas de todo o país, atingindo mais de 80 mil colaboradores de uma única empresa, dezenas de funcionários de entidades esportivas regionais, alunos e professores em instituições de ensino fundamental e médio e a sociedade como um todo no entorno dessas organizações que já passaram pelos nossos projetos.
Já disse o mestre Martin Luther King Jr: “Sempre é hora de fazer o que é certo”.
Então que assim seja: façamos nós, estejamos nós com a bola nos pés e agindo da maneira certa. Se nos cabe fazer letramento racial aos membros envolvidos nos campos gaúchos, que seja feito. Se nos cabe cobrar e organizar as cadeias de trabalho com todos os órgãos responsáveis por se fazer cumprir o antirracismo no esporte mais amado pelo nosso povo, considere feito.
Não vamos nos calar, não vamos silenciar, não vamos aceitar menos respeito do que nosso povo merece. Se estamos vivendo a luta antirracista em todas as outras áreas, como na aviação, nas escolas e universidades, nas áreas de tecnologia e inovação, com o esporte não seria diferente.
Estamos entrando em campo com um time forte, cheio de gás, estamos levando pessoas sérias e competentes de diversas áreas do saber: juristas, atletas, juízes, líderes dos movimentos negros, psicólogos, e como não poderia deixar de ser: estamos trazendo junto a lei. O protocolo conta com o Tribunal de Justiça Desportiva e a Comissão Estadual de Árbitros do Futebol. Vamos contar também com a comunidade e os movimentos negros, que não serão escolhidos de forma aleatória. Haverá um edital para que sejamos permeados de pessoas realmente comprometidas com a causa.
E para que você, amigo leitor, saiba o que mais está sendo feito pelo nosso futuro: já temos uma cartilha com letramento racial para as categorias de base. Os futuros atletas vão entender desde agora o tamanho dos problemas que os racistas enfrentarão, se por ventura se atreverem a nos ofender em campo.
O assunto é sério. Para nós, negros, o racismo adoece e mata. Portanto, a tolerância, como disse antes, é ZERO. Aos racistas fica o recado: agora é fim de jogo para vocês.
Kênia Aquino é Comissária de voo atuando como chefe de cabine, graduada em Comércio Exterior, tem pós em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global. Idealizadora do perfil Voo Negro, cofundadora do Coletivo Quilombo Aéreo e do projeto ‘Pretos que Voam’. Atua como Produtora na Malê Afroproduções e presidente da Odabá – Associação de Afroempreendedorismo.
Foto da Capa: Marcos Pereira Feijão (Studio Feijão & Lentilha)