Há tempos perdi a conta de quantos homens vi usarem o futebol como metáfora para as mais diversas situações da existência. Em casa, não foram poucas as vezes em que ouvi uma (frequentemente bem fundamentada, é verdade) teoria de que o futebol é “um microcosmo da vida”. Como dizem por aí, errados, eles não estão. Acontece que, ao relacionarmos a vida ao futebol, vinculamos os acontecimentos do nosso cotidiano a uma atividade em que há sempre vencedores e derrotados. No futebol, alguém sempre sai perdendo. É mesmo esse o paralelo que queremos seguir fazendo?
Basta ter tricotado um simples cachecol ou crochetado um único cobertor de bebê para saber que, a exemplo do futebol, as artes manuais têxteis são uma bela fonte de analogias para a existência humana. A diferença? Nelas, não há perdedores. Nelas, as pessoas se unem em círculos, não para disputar, mas para trocar, aprender, fazer. Não creio, portanto, que seja coincidência que o ato de tecer e seu universo estendido – de bordados, cortes e costuras – ainda sejam eminentemente femininos.
Ênfase no “ainda”. Se você tem a impressão de que há cada vez mais pessoas produzindo peças com fios, agulhas e tecidos é porque há. Já faz algum tempo que isso deixou de ser “coisa de vó”. No país e no mundo, pululam comunidades reais e virtuais, como o site Ravelry e o Instituto Urdume, onde muitos pensam no valor social e de bem-estar dessas atividades.
No começo deste ano, a escritora carioca Angélica Lopes, ela própria uma bordadeira, lançou um livro que fala sobre a força do tecer. A maldição das flores conta como um grupo de rendeiras do interior do Brasil desenvolveu, décadas atrás, um código para se comunicar por meio de pontos de renda em um período em que as mulheres não tinham voz.
Lições de relacionamento humano
É fácil traçar um paralelo entre os relacionamentos e o crochê. A empolgação do início dá lugar a certo tédio naquelas partes mais repetitivas, enfadonhas, (mas fundamentais para que a peça completa fique boa, bem estruturada). De vez em quando, o fio acaba ou arrebenta. Dependendo do humor, a gente refaz e amarra uma ponta na outra com todo cuidado, sem deixar marcas, ou dá um nó de qualquer jeito, só para a peça não desmontar. Depois de mais um tempo, volta e refaz o remendo melhor, ou deixa ele lá, como lembrança de que nem tudo são flores, mas o todo é que vale.
Quando a peça fica pronta, a gente se dá conta de que podia ter ficado melhor, mas, ainda assim, sente um orgulho imenso daquela trama, e decide, invariavelmente, fazer outra e outra e outra… A verdade é que nenhuma é a definitiva. Se fosse, a gente não teria vontade de continuar se dedicando ao tecer.
Às vezes, dá vontade de trocar de agulhas e fios, mas se engana quem acha que o trabalho de tecer vá ser muito diferente ou revolucionário. No começo, quem sabe. Depois de um tempo, a gente percebe que o que não conseguia fazer com as outras ferramentas, segue não conseguindo fazer com as novas. E vai seguindo.
Lições de planejamento, persistência e resiliência
Uma das coisas que mais me encantam no tricô, por exemplo, é que, como a vida, ele está sempre nos ensinando (muitas vezes na marra) a buscar um equilíbrio entre o que idealizamos e o que conseguimos fazer. A nos conformarmos com as pequenas falhas e, ao mesmo tempo, a saber quando é preciso desfazer e recomeçar porque o caminho iniciado não vai dar certo lá no final (porque vai faltar fio) ou já não deu (os pontos recém-aprendidos não eram o que a gente imaginava).
Um dos grandes desafios é saber diferenciar o momento em que é preciso não ter medo de desmanchar todo o trabalho e começar de novo do momento em que é preciso fechar os olhos para aquele ponto mais frouxo ou meio torto e seguir em frente, porque o perfeccionismo pode simplesmente nos paralisar.
Nesse sentido, a colcha multicolorida da foto que acompanha este texto é um bom retrato dessa caminhada. Comecei a tecê-la em 2017 para a primeira cama de solteiro da minha filha, então com cinco anos de idade. A ideia era fazer uma peça inteira de tricô. Empolgada, fiz todo um planejamento, com cálculos de quantidade de fios e tipos de pontos. Passadas algumas semanas, ficou claro que o trabalho seria insano e não resultaria no que eu havia imaginado. Frustrada, desisti.
Passados uns anos, aprendi crochê e lembrei da maçaroca de novelos e do pedaço tricotado que havia enfiado numa gaveta de qualquer maneira. Não foi fácil recomeçar. Muitos novelos estavam cheios de nós, enroscados uns nos outros. Foram alguns dias dedicados apenas a fazer o inventário do estrago, repensar o projeto sob outra ótica para só então empunhar agulha e linha.
Em fevereiro deste ano, a colcha ficou pronta. Tem uma parte em tricô, outra, em crochê. Tem remendos e cores desencontradas. Tem pedaços em que os pontos estão mais frouxos ou apertados. Olhos treinados veem que há quadrados emendados do lado avesso. É a imperfeição em forma de colcha. Mas traz em cada ponto uma história que vem desde 2017 e soma lembranças de tantas pessoas que entraram e passaram pela minha vida no processo. Como a vida.