Escrevo esse texto num domingo, dia da semana que gera tanta angústia e um clássico e quase universal sentimento de estranheza que mistura tristeza, um tanto de desencanto e uma ansiedade generalizada porque nos convoca a pensar sobre finais. Final do fim de semana, final de um dia de sossego, preparo para o retorno ao trabalho e à rotina que nem sempre traz satisfação e contentamento. Por mais que nossa cultura narcisista lute contra, o domingo sempre chega, mesmo que o combatamos com a espera e a promessa da próxima sexta-feira. E assim a vida passa rápido demais nesses tempos líquidos que Bauman tão genialmente nomeou, com seus sextou e tebetês.
O ser humano almeja a todo custo combater frustração, perda, luto e fracasso. É do jogo. O psiquismo busca incessantemente a estase de energia e a evitação do desprazer. É nessa brecha que entram os discursos contemporâneos motivacionais, capitaneados por coaches e outros mentores, gurus, que prometem jornadas, imersões, passos e apostilas cheios de frases prontas prometendo o caminho de curas e autoconhecimento. Nunca houve tanta oferta de resoluções imediatas e paradoxalmente tamanho desamparo em nossos dias. As pessoas buscam respostas rápidas para o sofrimento e esse discurso dito positivo encontra espaço numa zona de vulnerabilidade e rapidamente a ocupa.
Ocupa, mas não preenche. Faz barulho, mas não resolve. São tantas máximas que entram nesse pacote da hoje nomeada positividade tóxica que fica difícil escolher a pior. A positividade torna-se tóxica quando não tolera a negatividade, e mais do que isso, quando não compreende a negatividade como parte indissociável. Não como “parte do processo para chegar ao sucesso ou a realização ou a felicidade” como esses discursos garantem, mas como parte indissociável por existir enquanto tal e ser real, legítima. É preciso urgentemente ocupar a tristeza, o tédio, a frustração. Parar de enxergar a tristeza como caminho para a felicidade porque às vezes a tristeza é só tristeza mesmo. E, como dizem, “tá tudo bem!”. Só que não está tudo bem. Estamos adoecendo, estamos nos automedicando como nunca em busca de performance. Parece uma lógica inversamente proporcional: quanto mais infelizes e perdidos ficamos, mais discursos racionais que prometem felicidade instantânea surgem. A frase que ultimamente me parece a mais surreal nesse mar de positividade tóxica é a “foguete não tem ré”, usada quando se deseja apoiar ou estimular alguém que está aparentemente conquistando algo ou iniciando algo novo. Honestamente, sinto pena pelo foguete que não tem ré. Acho lamentável não poder desistir, perceber que se avançou no caminho errado ou simplesmente mudar de ideia, fracassar, retroceder, recuar, desligar ou até explodir. A positividade tóxica parece ter nos afastado ainda mais de nossa essência, de nossa busca pela aproximação com o outro e assim deixa mais aparentes a nós mesmos nossas insuficiências, covardias e fracassos.
Pois é, é sobre isso e não me parece nada bem. Também não está tudo mal. Quem sabe podemos nos acomodar com a ideia de que as coisas só estão. É preciso saber-se, e então estar onde se pode. Já me parece bastante.
Termino com um poema de Fernando Pessoa que, como dizem nos filmes e desenhos animados, caindo nas mãos erradas pode ser usado como fonte de positividade tóxica, mas parece se aplicar ao meu argumento de hoje. Quem sabe consigamos parar um pouco, estacionar, dar ré, às vezes até afogar o motor. Seja em foguetes, carros, motos ou bicicletas, parece que as estradas, céus, e outras vias de rota já parecem abarrotadas demais e ninguém mais lembra de olhar a paisagem.
Poema em Linha Reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática. 1944 (imp. 1993). p. 312.
Foto da Capa: Freepik
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