Não é de hoje que conhecemos o poder individual dos cães com as pessoas. Faz séculos que aqueles vêm humanizando essas, em diversos cenários. Trazem companhia para a solidão das grandes cidades. Trazem pertencimento para a marginalização das grandes cidades. Exemplos pungentes não faltam. O cão com o ancião esquecido. O cão com a criança gradeada. O cão com o mendigo na calçada. Tudo isso já não é pouco e transcende a submissão canina. É o verdadeiro resgate da presença humana pelos animais.
Mas um episódio recente, envolvendo cães em Porto Alegre, transcendeu a esfera individual. No dia 09 de abril, antes de ir para o trabalho, a Nathália deixou o seu cachorro Sebastião em uma pet shop do bairro Moinhos de Vento. Ele seria transferido para a outra sede da loja, quando a tutora, ainda dentro do estabelecimento, testemunhou a fuga do cachorro, desconfiado do novo motorista que faria o transporte. Daí, ao Parque Moinhos de Vento, perseguido pelo homem, o cão iniciou um longo caminho quase sem volta que só se encerrou no dia 21 de abril, na Vila dos Marinheiros, onde foi recolhido pela Dona Fátima que lhe deu água, comida, carinho e o devolveu para a Nath.
Graças às redes sociais, acompanhamos o périplo de Nath para recuperar o Sebas, que foi sendo fotografado em muitos bairros, mas sem se deixar levar por ninguém, mesmo por aqueles que o reconheciam. Não que não o desejasse, mas porque se assustava, tomado pelo medo que era o seu maior companheiro desde a separação.
Nathália ofereceu recompensa, mas não pareceu este o motor do caso. Havia milhares de curtições gratuitas em suas postagens, seguidas de compartilhamentos e buscas por todos os rincões da metrópole. Ninguém parecia querer largar o remo ou perder a esperança de reencontrar o cão fujão assustado. O caso tornou-se emblemático em termos de solidariedade e amor aos animais, mas está indo muito além disso. A Dona Fátima, sobrevivente da enchente do ano passado, depois de perder quase tudo, assim como a maioria de seus vizinhos, havia se tornado expert em não desistir e recuperar o que era possível. E foi possível recuperar o Sebas.
Em uma cidade jogada à própria sorte, cuja responsabilidade do Serviço de luz está entregue a uma Companhia incapaz de pensar na coletividade e que só contabiliza o próprio lucro…
Em uma cidade que em breve fará o mesmo com a água…
Em uma cidade que, como todas as grandes de seu país e mesmo do mundo, vem testemunhando a decadência das condições de trabalho, ora ausentes, ora desumanas, especialmente com moradores em bairros como o da Dona Fátima, basta ver as condições de vida de motoristas profissionais de veículos de duas rodas ou quatro…
Em uma cidade em que a saúde pública padece, a educação agoniza e a segurança não dá conta do mal-estar de sua incivilidade, especialmente em bairros como o da Dona Fátima…
Em uma cidade de poucos atos solidários, muito vilipêndio e poucas ações sociais relevantes por parte daqueles que foram eleitos para fazê-las, um cão perdido em um bairro “nobre” da mesma cidade foi sendo capaz de humanizá-la inteira em prol de uma causa comum: o reencontro de um bicho com a sua humana. Com uma multidão anônima sensibilizada pelas duas tristezas, instaurou-se uma verdadeira corrente do bem até mitigá-las, no final feliz da Vila dos Marinheiros.
Assim como já vinha dos animais domésticos aquele olhar capaz de salvar os indivíduos de uma solidão terrível e de uma invisibilidade cruel, parece deles também ter vindo uma tentativa de salvação do que podemos chamar de senso coletivo. E, mais uma vez, contamos com animais para recuperar humanos.
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Foto da Capa: Arquivo Pessoal / Nathalia Fritsch